sábado, 12 de novembro de 2011

A Chave

Direitos Autorais Reservados



A CHAVE

22-11-09

Sentado na cama da enfermaria, ele olhou para o saco plástico que a enfermeira lhe estendeu. Antes, o médico, na visita de rotina, havia assinado a sua alta. Alta? Se não sabia nem quem era...
- Aí está, Alírio. Sua roupa, seus pertences. Vista-se, você vai ficar livre de nós... Dessa você escapou... Mais cuidado, hein?
Alírio... Então era esse o seu nome? No hospital era a primeira vez que lhe tratavam pelo nome. Com certeza para forçá-lo a lembrar-se. Mas, qual, ele não sabia nem como havia parado ali. “Mais cuidado”, com que? Agora, era informado que estava com alta, iria para casa. Aliás, antes, ainda teria uma conversa com os médicos.
Sorriu meio sem graça para a enfermeira:
- Alírio... de que?
- Gonçalves Braga. É o que consta nos seus docu-mentos. Bonito nome, não é mesmo?
Ele olhou para o saco plástico no seu colo. Uma calça, uma camiseta, um par de sapatos, meias, algum dinheiro e sua carteira. Abriu o invólucro, pegou a carteira, conferiu a identidade. Era ele mesmo. O retrato, um tanto velho, não deixava dúvidas. Alírio Gonçalves Braga. Bonito nome...
- Muito obrigado. Quem sabe remexendo nessas coisas vá lembrar-me de algo que possa me ajudar?
- Vamos torcer... Vista-se, Alírio, e depois me procure. Vamos conversar com o Dr. Paulo.
Alírio sempre ouvira falar em amnésia, mas não imaginava ser uma sensação tão angustiante. Quem era? Se era casado, solteiro, se tinha família, onde morava, se trabalhava ou não... nada, nada vinha à sua mente. Parou em frente ao espelho, enfiou as duas mãos nos bolsos e perdeu tempo examinando-se. Realmente, não se conhecia.
Foi quando sua mão tocou em alguma coisa, no fundo do bolso. Uma chave. De onde seria? Presa a uma argola, que tinha um pequeno plástico com um número gravado: 113.
- Está pronto, Alírio? Vamos...
Dr. Paulo já o esperava.
- Como vai, Alírio? Então, nada ainda?
- Nada, doutor. Não sei nem como vim parar nesse hospital. Aliás, quero agradecer o tratamento que vocês me dispensaram. Nestes dias, todos foram muito pacientes e carinhosos comigo.
- Nestes dias... Rotina nossa, Alírio. É bom saber que você está bem. Isto é, exceto pela amnésia, é claro. Mas acredito que esse estado seja reversível. Você não ficou com nenhuma sequela que pudesse provocar esse esquecimento, por isso penso que ele seja de fundo emocional. Algo com que você talvez estivesse muito preocupado, na hora do acidente...
- Acidente?
- Você foi atropelado, Alírio. Teve contusões bastante sérias, esteve em coma, mas a sua cabeça não foi atingida. Por isso, sua amnésia não pode ser traumática.
- Atropelado... Quanto tempo estou aqui?
- Três meses... mas só há cinco dias recuperou a consciência. Não fosse pela amnésia, já poderia estar em casa.
- Três meses?... Mas em casa, onde? Se nem sei se tenho casa...
- Tem vindo aqui um rapaz lhe visitar constante-mente. Deve ser amigo seu. Seu nome é Nestor. Você não se lembra dele, com certeza, mas ele já foi avisado de sua alta e está a caminho.
- Ótimo, pelo menos deve saber quem eu sou...
- Com certeza. Alírio, você terá que vir ao hospital ao menos duas vezes por semana, para acompanhar-mos a involução dessa amnésia. Com exercícios de me-mória ela irá voltando aos poucos, tenho certeza.
A enfermeira interrompeu o diálogo:
- O rapaz chegou, Dr. Paulo.
Nestor entrou na sala, e dirigiu-se diretamente a Alírio, abraçando-o:
- Rapaz, o que houve contigo? O pessoal lá do es-critório está sentindo falta do cafezinho...
- Cafezinho?
Nestor voltou-se para o médico, e brincou:
- Alírio é o encarregado do nosso cafezinho, doutor. É o homem mais importante do escritório... Sem ele, aquilo não anda...
- Bom, já é alguma coisa, eu saber que trabalho num escritório e sirvo cafezinho...
- Diga-me uma coisa, Alírio: e a minha chave? Você perdeu-a, nessa confusão?
- Então a chave é sua... Achei-a hoje, no meu bolso, e pensei que fosse da minha casa, um apartamento 113 em algum lugar dessa cidade... Aqui está ela.
Nestor pegou-a com visível interesse.
- Ainda bem que você não a perdeu. Essa chave é muito importante.
- Mas por que estava comigo?
- Ora, foi um favor que você me prestou... Depois a gente conversa. Então, vamos para casa? Você não sabe, mas eu sei onde você mora. E não é em nenhum 113.

Da janela do escritório, Nestor e Olavo observavam o rapaz que ia atravessando a rua, levando uma maleta. Era Alírio, a caminho do aeroporto.
- Ali vai a nossa independência financeira...
- É verdade. Se tudo der certo...
- E porque não daria, Olavo? Ninguém sabe de nada, nem mesmo o Alírio sequer imagina o que leva naquela pasta.
- Eu sei. Planejamos tudo muito bem, modéstia à parte. E durante quanto tempo! Não há possibilidade de alguém dar falta do dinheiro, só nós dois lidávamos com ele... Toda a contabilidade está em ordem, pois ele nem poderia ser escriturado. Se veio dos fornecedores...
- Foi preciso muita paciência, mas conseguimos juntá-lo, ainda que em doses homeopáticas, Qualquer outra pessoa teria gasto tudo de uma vez. Agora, a re-compensa...
- Ainda assim, temos que ter muito cuidado. Vamos deixar esse dinheiro “descansando” por um bom tempo, para não levantarmos nenhuma suspeita. Nada melhor do que um guardavolumes.
Mas Alírio não seguiu direto para o aeroporto. Antes entrou numa loja, e perguntou ao vendedor:
- Por favor, o senhor teria uma maleta igual a esta? Com este mesmo tipo de fecho?
Era uma dessas fechaduras de cilindro, de senha única.
- Devo ter. Não é um modelo exclusivo. Entre, vou ver no nosso estoque.
Pouco tempo depois, saiu da loja com duas maletas idênticas, e foi para o aeroporto. Colocou a maleta dos rapazes em um escaninho, e guardou a chave: nº 311. Comprou alguns exemplares dos jornais do dia e trancou-se no sanitário. Encheu a mala que havia comprado com os jornais, e saiu, colocando-a em outro escaninho: 113. Sem antes rodar o cilindro e esquecer propositadamente a senha...
Na saída, passou pelo escaninho onde estava a mala de dinheiro, bem longe dali, e bateu três vezes na porta:
- Depois cuido de você...
Brincou com a chave, enfiou-a no bolso e sorriu.
- Ladrão que rouba ladrão...
Do aeroporto foi para casa, que o expediente do escritório já tinha terminado. No dia seguinte entregaria chave para Nestor. A sua chave, tratou de escondê-la em um lugar onde ninguém a achasse: dentro do plafo-nier do quarto.
Tomou um banho e desceu para jantar. Mas não chegou ao restaurante. Distraído, pensando na fortuna que havia conseguido tão facilmente, sem testemunhas, sem cúmplices, antegozando a sua nova vida de milionário, não viu um carro que se aproximava, e atravessou a rua em frente a ele, sendo arremessado à distância.

Como “homem do cafezinho”, era sempre o mais esperado do escritório, o que nunca podia faltar, o único que tinha acesso e era bem vindo em todos os departamentos. E foi justamente por isso que se inteirou do plano dos dois companheiros.
Quando, um dia, entrava na sala em que estavam, ouviu um trecho de conversa que o fez recuar e ficar na espreita.
- Não se preocupe, Olavo. Ninguém vai descobrir...
Aquela frase aguçou os seus sentidos, e ele, silenciosamente, acabou ficando a par de todo o plano.
- Podemos usar o Alírio. Diremos que um de nós vai viajar, mas que antes terá uma reunião com um cliente na qual não ficará bem comparecer com uma maleta. Ele deverá levá-la para o aeroporto, e guardá-la num daqueles escaninhos. Lá poderemos deixá-la por um bom tempo, até termos a certeza de que nenhuma suspeita foi levantada. É claro que não vamos viajar, mas talvez fosse bom um de nós não vir ao escritório por uns dois dias.
- Tenho mesmo que resolver umas coisas. Vou avisar à minha secretária. Mas que tipo de suspeita poderia haver? Isso é dinheiro de propina, nem entra em nenhuma contabilidade...
- Eu sei, mas poderia levantar suspeitas se começássemos a lançar mão dessa fortuna. E olhe que a tentação é grande...
- Não, não pode haver nem tentação. Será, isto sim, nossa independência financeira, graças a esses contratos milionários que a firma faz. Mais tarde, bem mais tarde, poderemos até pedir nossa demissão sem levantar suspeitas. Seremos dois honrados funcionários, em prematura aposentadoria...
- Plano perfeito! Precisamos ter muita paciência, mas valerá a pena.
De seu canto, Alírio sorriu e pensou: “A aposentadoria de vocês, ou a minha?...”

Nestor deixou o rapaz em casa.
- Pronto, Alírio, remexa suas coisas e veja se lembra de alguma coisa. E olhe, se você está se sentindo bem, acharia melhor que você fosse trabalhar logo amanhã. Não pelo cafezinho, é lógico... Mas o contato com os colegas irá talvez lhe ajudar a recuperar a memória.
- Irei, com certeza, Nestor, você tem razão.
No dia seguinte, outra vez Nestor e Olavo estavam na janela, quando viram Alírio chegando para o trabalho.
- Veja que sorte a nossa, Olavo! Alírio desmemoria-do, a chave conosco, e ele não sabe nem de onde ela é... Agora é só esperar.
- É verdade. Nestor, por que você não vai até o aeroporto, a ver se está tudo bem?
- É o que vou fazer. Vou dar as boas vindas ao Alírio e ir até lá. Estou ansioso para rever aquela maleta.
Alírio foi recebido com festa pelos colegas. Todos queriam saber o que tinha havido, como teria acontecido aquela tragédia, mas ele nada pôde esclarecer. Nem ali, no seu ambiente de trabalho, qualquer pista parecia trazer-lhe de volta a memória perdida.
Mais tarde, Nestor comentou com Olavo:
- A maleta está lá, Olavo. Mas tentei abri-la e não consegui. Levei a senha escrita num pedaço de papel, mas não funcionou. Deve ter enguiçado. Mas pelo peso, a nossa aposentadoria está intacta...
- Deixe-a lá. Depois a gente dá um jeito de abrir aquele cilindro. Como disse, vamos deixar o dinheiro “descansando” mais um pouco... Não podemos ser apressados.
- É, mas com essa história do Alírio ele já “descansou” pelo menos três meses. Mais um pouco e vamos poder usufruir da nossa aposentadoria.
Naquela noite, Em casa, Alírio começou a revirar seus guardados, em busca de alguma pista de sua identidade. Nada que lhe acrescentasse algo à memória vinha daqueles objetos. Eram fotos, cartas, documentos. Descobriu apenas que não tinha família, morava naquele pequeno apartamento sozinho, que teve um companheiro de quarto – chamado Pacheco – que havia falecido já há algum tempo, que as contas estavam pagas e, principalmente, que levava uma vida muito solitária. Parecia-lhe que ela se resumia a distribuir café para os colegas, no escritório. Onde, por sinal, era muito querido.
- Talvez seja melhor que eu não recupere nunca a memória. Vida nova, quem sabe?, deve ser melhor que as lembranças. Ainda mais se estas não forem muito boas...
Cansou-se. Ainda com a roupa que chegou da rua, deitou-se e ficou olhando para o teto. Que seria de sua vida dali em diante? Absorto em pensamentos sem rumo, observou uma pequena mancha no vidro translúcido do plafonier. “Que será aquilo?” – pensou. Nunca havia reparado naquela mancha. Subiu numa cadeira e tateou até achar o pequeno objeto. Era uma chave.
Quando a fechou nas mãos, imediatamente veio-lhe um pensamento na mente: “Dinheiro!”
Dinheiro? Mas por que dinheiro? Que estranha e súbita lembrança era aquela? Chave, dinheiro... dinheiro de onde? Havia um pequeno plástico com um número, preso à argola da chave: 311. Não se preocupou muito, acabaria descobrindo.

Nestor entrou esbaforido no escritório. Dirigiu-se à sala de Olavo, entrou e bateu a porta com estrépito:
- Que quer dizer isso, Olavo? Onde está o dinheiro?
- Que dinheiro, Nestor? O que é que há?
- Ora, que dinheiro! A mala está cheia de jornais velhos, Olavo. O que você fez com o dinheiro? Quer me passar a perna?
- Jornais velhos? Eu nem voltei ao aeroporto! Você é que foi lá e disse que o cilindro tinha enguiçado, não se lembra? Agora vem com essa história de jornais velhos! Eu é que pergunto: onde está o dinheiro? Não foi você que ficou com a chave? Como é que você abriu a mala?
- Não interessa, isso é o de menos! Eu lhe dei a chave, e você também foi ver a mala, já não se lembra mais? Como é que você pretendia me passar pra trás? Qual era o seu plano?
– Estou querendo saber qual é o seu plano, não o meu! Você vem aqui, faz esse teatro todo, sabendo que nenhum de nós dois pode acusar o outro, mas o dinheiro já deve estar longe, não é? Ah, mas eu vou dar um jeito! Isso não vai ficar assim...
– Eu é quem digo! Não vai ficar assim, mesmo!
Ato contínuo, avançou para Olavo, que se defendeu como pode. Eram dois rapazes fortes, e a luta não seria desigual. Nestor estava possesso, Olavo mais ainda. Rolaram pela sala, derrubando tudo o que estava ao alcance, nenhum se conformando com a “traição” do outro. O ruído chamou a atenção dos colegas de trabalho, que aos poucos, aglomeraram-se na porta da sala fechada. Lá dentro, no ardor da luta, Nestor alcançou uma pesada estatueta e golpeou a cabeça de Olavo, que, ao cair, mais uma vez bateu com a cabeça na ponta da mesa. Nesse momento, a porta foi arrombada e os outros, com Alírio à frente, depararam com Nestor de pé, a estatueta na mão e Olavo caído, sangrando abundantemente.
- Nestor! O que você fez?!
Nestor estava lívido. Não conseguia se mover, olhando fixamente para o colega estendido aos seus pés. Deixou cair pesadamente a estatueta e ajoelhou-se ao lado de Olavo.
- O que foi que eu fiz... O que foi que eu fiz...
Nestor foi levado pela polícia em estado de choque. Olavo estava morto. Ninguém podia sequer imaginar o motivo da desavença que havia culminado com um fim tão trágico.
- Eram tão amigos... Estavam sempre juntos...
- Como irmãos...
Alírio não entendia. Por que aquela briga repentina, sem motivo aparente?
- Ontem mesmo estavam juntos, rindo e brincando... Pareciam estar planejando algo que iriam fazer...
Voltou para casa desolado. Um crime, entre colegas, num escritório tão pacato, onde todos se davam tão bem! Na véspera havia servido o seu cafezinho aos dois, na sala de Nestor. Encontrou-os rindo, como sempre. Até mexeram com ele:
- Puxa, Alírio, seu cafezinho fez falta! O outro que puseram no seu lugar não sabia fazer tão bem como você...
- Isso você não esqueceu, não é? Como é, e a memória? Nada ainda?
- Nada... Mas, sabe? Ontem mesmo aconteceu uma coisa curiosa comigo. Estava deitado na cama, olhando para o teto, quando vi, em cima do lustre...
Nesse momento, entrou um colega:
- Como é, Alírio, e o nosso café? Estamos esperando!
- Já vou, já vou... Olhe, depois eu conto. O pessoal esta indócil...

Sentado na sua poltrona, Alírio examinava a chave em sua mão, imaginando mil coisas sobre como ela teria ido parar em cima do lustre do quarto. Ao mesmo tempo, não lhe saía da cabeça aquele crime monstruoso que separou para sempre os dois amigos.
Que teria havido? Jamais alguém saberia. Nestor, preso, recusava-se a falar uma palavra sobre o que havia acontecido. Parecia preferir ser condenado a se defender. Mas só ele sabia que ainda havia uma mínima chance para recuperar a fortuna amealhada com a cumplicidade de Olavo. “Um dia vou sair daqui...” – pensava. Mas não tinha a menor idéia de como, então, faria o resgate do dinheiro.
“311”... Que número seria aquele, preso à chave? Com certeza teria sido o seu companheiro de quarto que a escondera no plafonier. E por que, ao senti-la nas mãos, veio a idéia fixa de “dinheiro”, à sua mente? Aquela chave seria de algum escaninho, em algum guarda volumes da cidade? Rodoviárias, estação ferroviária, aeroportos... Quem sabe não começaria a procurar? Nada teria a perder.
Primeiro foi à rodoviária principal da cidade. Não havia escaninhos, era um funcionário que recolhia os vo-lumes em troca de uma senha.
- Mas essa chave está me parecendo do aeroporto – disse o rapaz a Alírio – é coisa fina, muito bem feita. Primeiro mundo...
No aeroporto, Alírio constatou que ele tinha razão. Procurou o armário 311 – a chave abriu-o com facilidade. De lá de dentro retirou uma pequena maleta, e não se conteve. Sussurrou, para si mesmo:
- É dinheiro. Não sei por que, mas alguma coisa me diz que é dinheiro...
Em casa, não teve dificuldades em abrir a mala. Nervoso, arrebentou o cilindro do segredo com sofreguidão, e constatou que estava certo. Ali havia uma pequena fortuna.
- Meu Deus! Esse dinheiro só pode ser do falecido Pacheco! Mas por que ele nunca me disse nada? Morou tanto tempo comigo, foi-se embora pro outro lado e deixou essa fortuna para... ninguém? E agora?
No dia seguinte, contou o achado para os colegas. Cada um deu um palpite: “Casa comigo...”, dizia uma delas. “Divide com a gente...” – exclamava outro. “Está rico, vai esquecer os colegas...” – lamentava um terceiro.
- O dinheiro é seu, Alírio. Faça o que você bem entender com ele. – Foi a sugestão mais sensata.
- Calma, gente... Esse dinheiro é meu, nada... E se eu bem conhecia o Pacheco, acho que sei o que ele gostaria que eu fizesse com ele. Amanhã mesmo vai ser dividido com quem não tem nada...
E, batendo no ombro do que estava mais próximo:
- Podem deixar que o cafezinho do meio do expediente está garantido... Vocês não vão se ver livres de mim assim tão facilmente... 





 

     



segunda-feira, 7 de novembro de 2011

ESSA É DO QUEIROZ


POLÍTICOS E FRALDAS
PRECISAM SER
TROCADOS
AMIÚDE,
PELO MESMO
MOTIVO.

EÇA DE QUEIROZ

sexta-feira, 4 de novembro de 2011

LEITERIA GIBI (Despedida do Rio))

Direitos Autorais Reservados



LEITERIA  GIBI  (DESPEDIDA DO RIO)
(Esta história foi recolhida em folhas esparsas, sobre uma mesa da Leiteria Gibi...)
-1-
-Pois é... Para você, a Leiteria Gibi nada significa, não é mesmo? No entanto, para mim...
- Para mim, apenas mais uma, das muitas leiterias que tem o Rio de Janeiro... E para você? Recordações da infância, com certeza...
- É, antes eram apenas recordações. Mas depois que certas coisas aconteceram, essa leiteria entrou na minha vida... 
- Por que?
- “É uma longa história”- como se costuma dizer... Um tanto inusitada, mas verdadeira..
- Uma longa história... Você está misterioso...
- Não, não estou. A história não é assim tão longa... Se você quiser ouvi-la...
- Mas claro que quero. As suas histórias são sempre tão intrigantes, tão reais...
- Mas como, “tão reais”? Elas são reais. Olhe só a Leiteria Gibi. Quase cinquenta anos depois, os garçons ainda são os mesmos, a “minha” mesa continua lá no canto... Tudo pelo que passei aqui ainda está bem vivo na minha memória. O que será real? O que será fantasia? Vamos até lá, vamos entrar. Você tem tempo?
- Todo o tempo do mundo. Vamos para a “sua” mesa?
- Sim, é a penúltima à esquerda, encostada na parede. Mas, espere, antes de entrarmos: olhe esta vitrinezinha, aqui na entrada. Sabe? É também daquele tempo. Repare nos seus vidros curvos, são importados. Se por acaso algum deles se quebrar, será fatalmente substituído por um plástico... Olhe os potinhos de creme com cobertura de chocolate, também não mudaram nada...
- Pelo que vejo, nada aqui mudou.
- Nada. Repare no tamanho das mesas. Menos de meio metro de lado, mas com quatro cadeiras. Nunca entendi isso.
- A gente sentava só para tomar um cafezinho... Você devia vir muito aqui, não é?
- Duas vezes, em toda a minha vida.
- Duas vezes, apenas? Por que então se sente tão ligado a esta casa?
- Pois é pra você ver. Também, depois do que aconteceu...
- A tal longa história...
- É... Esta é a terceira vez que entro aqui. Quando eu era garoto, pelo menos duas vezes por semana eu passava no bonde, ali em frente, e pregava os olhos naquela vitrine. Aqueles potinhos de creme que lhe mostrei eram um sonho irrealizável.
- Por que irrealizável?
- Ora, naquele tempo ninguém punha dinheiro na mão de criança. Eu vinha à cidade com duzentos reis, para as duas passagens de bonde, ida e volta para o dentista, que, aliás, era meu pai. E mais nada. Eu namorava aqueles potinhos, do alto do bonde, como quem namora uma jóia na vitrine da joalheria.
- Eu sei. Para as crianças, as coisas eram muito difíceis...
- Um dia, porém, vim à cidade com meu pai. Naquele dia não iria ao seu consultório, era um sábado. Ele trouxe-me para comprar sapatos, na “Cedofeita”. Depois, já de sapatinhos novos, passávamos aqui em frente à Gibi a caminho do ponto do bonde, quando ele falou : “Você quer fazer um lanche?” Imediatamente olhei para a vitrine. Claro que queria...
Entrei, seguido por ele, e sentamos aqui mesmo, nesta mesa. Talvez até mesmo um destes garçons nos tenha atendido, pois são os mesmos até hoje... Não me lembro o que meu pai pediu. Lembro-me muito bem do meu pedido: um pote de creme com cobertura de chocolate... Você não pode imaginar como degustei aquele manjar! Teria aceitado outro e mais outro, se me fossem oferecidos... Depois, quando saímos, olhei de relance, vitorioso, para a vitrine: estava faltando um potinho na fileira, e havia sido servido a mim! Eu estava realizado...
- É razoável. Na cabecinha de uma criança, os fatos, para nós insignificantes, adquirem uma importância enorme... Mas, e daí?
- Bem, eu continuei passando por aqui com certa frequência, é meu caminho. Sempre “tomando conta” da vitrine. Procurá-la com o olhar e conferir os potinhos de creme já se tornou um gesto instintivo. Mas nunca mais pedi um deles.
- Mas você deve passar por aqui realizado... E seu pai, o que achou quando lhe proporcionou esse seu sonho?
- Meu pai? Ele mesmo nunca veio a saber de nada. Diálogos nossos com os mais velhos, naquele tempo, eram tão difíceis quanto dinheiro na mão de criança. Ele nem deve ter imaginado a alegria que me proporcionou, tampouco houve oportunidade para me chamar para outro lanchinho... E como eu nunca tinha dinheiro, nunca mais saboreei um potinho de creme. Mas essas coisas não doíam, como pode parecer à primeira vista. Nós não éramos exigentes como as crianças de hoje...
- São boas essas recordações da infância...
- Sim, e eram, como eu disse, apenas recordações. Até que um dia, resolvi... voltar à infância.
- Voltar à infância?
- Sim. Durante todo esse tempo - trinta e tantos anos - fui, como você também, testemunha de mudanças radicais na cidade. Vi acabarem-se os bondes e com eles o abrigo do ponto final, ali no largo de S. Francisco; a Escola de Engenharia não funciona mais nesse casarão aí em frente; nem a tradicional Casa Arthur é mais a mesma. No entanto, a Leiteria Gibi e seus copos de creme resistiram a tudo.
Então, mais ou menos há uns três anos, eu vinha pela rua refletindo sobre essas coisas, quando passei por aqui. Parei em frente à leiteria e fiquei relembrando o passado. Infantilmente, resolvi entrar. A “minha” mesa estava vazia e havia poucos clientes. Assim como hoje. Sentei-me, voltado para a rua, e logo veio o garçom tomar-me o pedido.
- Um pote de creme com chocolate, por favor.
- Gelado?
Já era uma novidade. Sim, gelado. “Quando eu sair” - pensei - “não vou ver o lugar vazio do meu potinho. Já virá da geladeira...”
Enquanto aguardava o meu pedido, especulava o ambiente. As mesinhas continuavam minúsculas; o salão agora me parecia bem menor, apesar das paredes de espelhos, paralelas, multiplicarem sua área ao infinito. Eu havia crescido, afinal de contas...
Do meu lugar podia ver todo o ambiente. Era destoantemente idêntico àquele de há quarenta anos, mostrava-se imune às transformações diárias que aconteciam à sua volta. Veio o potinho, e comecei a saborear lentamente o meu creme, até com um certo respeito. O mesmo copo “americano”, o mesmo aspecto, o mesmo sabor.
Não devia tê-lo pedido gelado...
- Gostei do “destoantemente idêntico”...
- Bem exprime o que senti... Olhe, eu estava tão imerso naquele ambiente, naquela época, que talvez não me surpreendesse se a qualquer momento um bonde passasse ruidosamente ali em frente, a caminho do largo de S. Francisco. Até olhei para a rua, na improvável esperança de vê-lo...
Foi quando notei um senhor, parado em frente à pequena vitrine, com as mãos para trás. Outro saudosista, pensei. Ao mesmo tempo, senti algo de familiar no seu vulto. E se digo vulto, era porque o paredão da Escola de Engenharia, em frente, refletindo a luz do sol, colocava-o contra a claridade e por isso eu mal via a sua fisionomia. A calva, pronunciada, reluzia à luz da tarde. Mas podia ver bem a sua roupa: uma calça bege e um paletó de lã grossa, em tweed largo do mesmo tom. A gravata, igualmente de lã, era quadriculada em diagonal. Era-me realmente uma figura muito familiar... Tive até a impressão de que também me olhava.
Então, ele começou lentamente a entrar e vir em direção à minha mesa. Agora mais perto, podia vê-lo muito bem. Eu tinha razão, eu o conhecia.
Era o meu pai.
Aproximou-se, calado, sorrindo e sentou-se na minha frente, cruzando as mãos em cima da mesa, como quem sabia estar me fazendo uma baita surpresa... Tinha a aparência de um homem apenas um pouco mais velho do que eu. Sessenta, talvez. Meus olhos estavam colados aos seus. A boca, muda. Reconheci até a roupa que usava. Era a mesma que vestia quando lhe bati uma foto, em meados dos anos cinquenta.
- Chiquito?...
Foi a única palavra que consegui falar. Era assim que nós, seus filhos, o chamávamos. Ele sorriu e não me respondeu.
Pareceu-me longa eternidade aqueles poucos segundos em que nos olhamos, olhos nos olhos.
- Alguma coisa, senhor?
As palavras do garçom não quebraram o encantamento, ao contrário, mostraram-me que meu pai estava mesmo ali, sentado na minha frente. Ele olhou para o homem e, educadamente, fez um meneio com a cabeça, em negativa. O outro se retirou. Voltou-se então para mim :
- Acabou o seu lanche?
A voz também era a mesma. Balancei a cabeça. Sim, tinha acabado. O que estava acontecendo era muito mais importante do que o meu pote de creme.
- Então, vamos?
Repeti o gesto afirmativo. Ele levantou-se e foi seguido por mim. Na rua, andamos lado a lado uma centena de passos em direção ao abrigo de bondes. Tive nítida sensação de que estávamos de mãos dadas. Pai e filho...
- De mãos dadas? Dois adultos?
- Adultos? Quem era adulto e quem era criança? Quem saberia?
O que sei é que não demorou a apontar, na esquina da avenida Passos, o “Aldeia Campista”. O bonde, enorme, simpático e barulhento mal cabia na ruazinha estreita. Era o meia-nove. Parou e suspirou nos freios, aguardando que tomássemos assento. Meu pai ajudou-me a subir, como se ajuda uma criança. Atravessei o banco vazio, correndo, e sentei-me junto à grade de proteção, do outro lado. Ele sentou-se ao meu lado.
Foi uma viagem inesquecível. Coisa curiosa: eu só pensava no meu potinho de creme, no meu desejo satisfeito... Havia deixado de ser um sonho. Olhava para a rua, para as pessoas, mas não conseguia, ou não me esforçava para entender a situação.
Devíamos estar indo para casa, e nada me preocupava. Eu estava de sapatos novos. Eu estava feliz. Eu estava com meu pai. O Chiquito.
A certa altura ele deu o sinal de parada. Saltamos e o bonde seguiu seu destino. Começamos a andar, lado a lado. Já não sabia se tínhamos a mesma altura e quase a mesma idade. Persistia a sensação de que andávamos de mãos dadas. Perto de nossa casa, soltei-me e corri na frente, até o portão.
Entramos. Logo na pequena saleta, o telefone preto, na parede, era novidade naquele tempo. À direita, o vão da escada, que se desenvolvia em curva debaixo da enorme clarabóia, que inundava o ambiente com uma claridade suave e uniforme. E em frente, a sala, grande, com portas em toda a volta, que se abriam para o quintal.
Sabe, se me estendo dessa maneira na narrativa é porque está tudo tão vivo na minha memória que me fica difícil tentar suprimir algum detalhe...
- Eu compreendo. Continue, eu gosto assim mesmo, a gente participa muito mais. Estou entrando com vocês dois na casa...
- Pois bem. Ele subiu a escada, eu segui atrás, até o quarto em frente. Na porta, colocou a mão no meu ombro e disse : “Agora está na hora de você se deitar”. Lembro-me de não ter visto mais ninguém em casa, mas isso não me incomodou. Tampouco sabia por que teria que ir para a cama tão cedo, mas obedeci e deitei-me.
Pela outra porta do quarto, que dava para a varanda, podia ver o céu azul e as copas das árvores da rua. Ele permaneceu aos pés da cama, olhando-me, a cabeça um pouco inclinada e as mãos cruzadas na frente, numa atitude muito sua. Sorria, meigo.
Então minha visão começou a embaçar as imagens, que, aos poucos, iam perdendo a nitidez. A figura de meu pai tornou-se opaca e o ambiente foi perdendo as características do meu quarto, numa sutil mutação de cores e nuances, envolto em denso nevoeiro. Eu não me sentia mal. Apenas a minha visão estava alterada. Esforçava-me, sem sucesso, para distinguir alguma coisa, mas não conseguia ver nada além de manchas que se moviam.
Mas não durou muito, essa sensação. Em breve, lentamente fui recuperando a visão e começando a perceber um novo ambiente à minha volta. 
O quarto, de paredes verdes, o lustre pendente do teto, a visão da varanda através da porta... já não estavam mais ali. Transformara-se em um quarto de hospital, onde paredes, portas e até a cama eram de um branco impecável. E não era mais o meu pai que estava aos pés do leito e sim um jovem médico, que também me olhava e também sorria.
- Então, como se sente? - perguntou-me, enquanto a enfermeira ajeitava os lençóis.
- Sinto-me bem... Só não imagino o que possa estar fazendo aqui...
- Você escapou de boa, meu caro... Mas agora está tudo bem...
Obviamente eu nada entendia. Quase perguntei por meu pai, mas percebi a tempo que seria uma pergunta sem resposta.
- O que houve comigo? De que, afinal, eu escapei?
Ele pôs-me a par de tudo. O infarto, na Leiteria Gibi, o socorro rápido, as prontas providências. O perigo já havia passado. No momento, precisava apenas de muito repouso e mais alguns exames. E procurar não me emocionar...
Mais tarde, talvez uma ou duas safenas.
O aviso havia sido dado...
 
-2-

- Que folhas são estas? Recordações do Rio?
- Mais ou menos... O Rio de Janeiro será sempre uma fonte de recordações. Vivi lá quase toda a minha vida. Cheguei ao Rio com menos de quatro anos, e só o deixei para vir para cá. Tome, leia depois...
- O Rio mudou muito... Também gosto de recordações...
- Mudou, mudou... Mas o que não muda? Apesar de todas as inevitáveis mudanças, eu sempre aproveitava as menores coisas que a cidade conservava intactas e tirava proveito delas. Era o Cinema Pathé, o Largo da Carioca, o convento lá no alto do morro... Ainda lhe digo mais: quando via tudo muito transformado pelo tempo eu ia ao passado, ou o passado vinha a mim, não sei. Foi assim, com a Leiteria Gibi...
- Leiteria Gibi?
- Sim, é uma leiteria que existe até hoje na Rua Luis de Camões, que permaneceu imune às transformações ao seu redor, mantendo o mesmo aspecto de há cinquenta anos. É uma casa singela, pobre mesmo, feia e mal cuidada, embora muito limpa e asseada. Nunca se propôs a ser mais do que é, pois nasceu modesta e modesta é até hoje.
- Por que o seu carinho por ela?
- Bem, primeiro, porque como eu já disse tem toda a ambientação do Rio antigo, coisa que já gosto; segundo, porque eu tenho uma história com ela.
- História? Podemos ouvi-la?
- Claro... É a história dos potinhos de creme.
- Potinhos de creme?
- Sabe, desde criança eu namorava uns potinhos de creme com cobertura de chocolate que sempre havia na vitrine da entrada - aliás, são servidos do mesmo jeito até hoje. Todas as vezes que eu passava em frente à casa, lembrava-me de um fato curioso que aconteceu.
- O que foi?
- O fato em si deixou-me apenas uma boa lembrança. Nada demais... É que aqueles potinhos de creme, para uma criança de dez anos, que era a minha idade na época, eram inalcançáveis, porque se eu tivesse o dinheiro - e nunca tinha - jamais poderia sozinho, sentar-me numa das mesas e satisfazer meu desejo. Tampouco os adultos levavam-me para lanches fora de casa. Tinha que me contentar com o café com leite, pão e manteiga, no meio da tarde, e em casa mesmo. O que, aliás, era outra delícia...
- É verdade...
- Um dia, meu pai foi à cidade comigo, e por pura coincidência, pois ele não sabia da minha “paixão”, entrou na Leiteria Gibi e proporcionou-me um lanche, que foi, é óbvio, um pote de creme. Desse dia em diante eu passava pela vitrine com um olhar de vitória, de desejo satisfeito... Esse fato sempre me trouxe uma lembrança gostosa da minha infância...
- Criança tem cada uma, não é?
- É mesmo. E eu, que sempre fui meio criança, um dia resolvi repetir a experiência. Aí então foi que a Leiteria Gibi passou realmente a fazer parte da minha vida.
- Como assim?
- Pois é. Eu ia passando em frente a ela e resolvi entrar. Relembraria os velhos tempos. Nunca mais havia entrado ali, desde o dia do lanche com meu pai. Quarenta anos! Vez por outra passava em frente e voltava à minha memória aquele fato tão singelo, mas nunca mais pus os pés lá dentro.
- Então você só tinha ido lá uma vez?
- Só uma vez... Por isso estava ali, agora. Sentado na mesma mesa e relembrando, do mesmo ângulo de visão, o dia do lanche com meu pai. Pedi ao garçom, é claro, um pote de creme.
Enquanto saboreava o manjar, veio-me a idéia de escrever uma história. Você sabe, eu sempre gostei de escrever. Seria em forma de diálogo, com... você. Misturaria realidade e ficção, dosando os ingredientes de modo a nunca se saber onde terminaria uma e começaria a outra. Meu pai estaria presente de tal maneira que não necessitasse de mais explicações. Eu recriaria o passado, os garçons seriam bem jovens - por incrível que pareça, são os mesmos até hoje - os bondes passariam ruidosamente em frente... Eu me arranjaria até viajando num deles. Daria um jeito de rever a casa em que morei, na Tijuca...
-  Um diálogo comigo... Mas que imaginação fértil !
- A imaginação chega fácil, quando as coisas realmente poderiam ter acontecido. É só aumentar um pouco... Pensei, então: escreveria ali mesmo, naquela hora. O ambiente calmo, a casa vazia e a boa gorjeta garantiriam-me suficiente paz para a tarefa.
Terminei meu lanche, tomei da lapiseira e de algumas folhas de papel que sempre levava comigo e comecei a escrever. As idéias surgiam-me aos borbotões, rapidamente a história se delineava. Eu estava tão envolvido com o ambiente e a narrativa, que me parecia mesmo estar vivendo aquela situação...
Pouco tempo depois a história estava terminada. Botei-lhe o nome de “Leiteria Gibi”. Comecei então a relê-la, para os primeiros acertos. Embora absorvido pela leitura, senti que havia alguém de pé, um pouco atrás de mim. Imaginei ser o garçom, curioso pelas minhas atividades literárias, e no início não me importei. Mas passado algum tempo senti que o outro não arredava pé. Voltei-me, então, para lhe dar atenção.
Olhe, confesso que levei um bom susto! Não era o garçom que lia a minha história, sem cerimônia, por cima dos meus ombros.
Era meu pai...
Com a mesma aparência que tinha há trinta anos atrás, na ocasião da sua morte... Aliás, minto: estava muito mais bem disposto... Calmo, tranquilo, parecia estar esperando que eu acabasse a leitura para falar comigo. Vestia roupa clara, leve; a camisa de mangas curtas e a calça bem talhada eram muito diferentes do traje pesado que eu havia lhe colocado, na minha história.
Meu susto, aos poucos, foi sendo substituído por uma alegria quase incontrolável. Não me interessava saber de onde ele estava vindo, só pensava no quanto teríamos para conversar. Era meu pai que estava ali e isso me bastava.
“Senta, Chiquito...”- foi só o que eu disse. Ele, porém, não se sentou. Colocou mansamente a mão no meu ombro. “Bonita história...”. Eu lhe sorri. “Vamos?” - continuou ele - “Temos muito o que conversar, no caminho...”. Parecia repetir as palavras que não cheguei a pronunciar.
Levantei-me. Saí na frente, ele um pouco atrás, ainda com mão no meu ombro. Na porta da leiteria, porém, instintivamente tentei voltar ao que ainda me parecia ser a realidade: lembrei-me de que não havia pago a conta e ainda devia uma boa gorjeta ao garçom... Voltei a cabeça, procurando-o. Olhei para a mesa que havia ocupado, no canto do salão.
Então eu me vi, a mim mesmo, sentado ainda, a cabeça ligeiramente pendente recostada na parede de espelhos, como se estivesse dormindo. A lapiseira solta entre os dedos, as folhas espalhadas sobre a mesa. Estas que eu lhe dei para ler...
Compreendi tudo...
Tornei a olhar para meu pai. A  fisionomia serena, repetiu, sorrindo : “Vamos?”
Sorri, também. “Vamos...” - eu lhe respondi.
Saímos, nós dois, caminhando lado a lado.
Eu estava despedindo-me do Rio...