quinta-feira, 30 de junho de 2011

CÂNDIDA ROSA

CÂNDIDA ROSA
Out - 2010 - Direitos Autorais Reservados



1
- Olha o que eu achei...
Candinha estendeu a mão, mostrando-me um anel no dedo indicador.
- Só cabe nesse dedo. É grande pra mim.
- Por enquanto... Você é pequena, ainda vai crescer muito. Daqui a um tempo vai estar bonzinho na sua mão. Bonito, esse anel. Onde você o achou?
- Na terra, aqui na horta. Eu estava cavoucando pra plantar um pezinho de alface, aí a pá bateu numa panelinha, fui ver, era o anel.
- Numa panelinha? O anel estava dentro de uma panelinha? Enterrado?
- É, uma panelinha de pedra. Igual àquelas que eu tenho, de brincar de casinha... Ela tava num buraco até bem fundinho...
- Cadê essa panelinha, Candinha?
- Tá aqui, ó. Tá muito suja de terra.
Era uma panelinha de pedra-sabão, um desses brinquedos de criança da roça.
- Deixa eu ver de novo esse anel, Cândida. Você limpou ele?
- Eu não, só passei uma aguinha pra tirar a terra. Ele brilhou logo.
Uma fina jóia. De início pensei que fosse apenas uma bijuteria, não dei importância. Mas era um delicado anel, todo de ouro, com uma minúscula figura em relevo. Era uma rosa, muito bem trabalhada, muito bem feita. A figura não tinha mais do que um centímetro, e encimava a mesa do anel. Um trabalho impar de ourivesaria.
A fazenda pertecia-nos há mais de um século. Fonte de renda, no passado, era agora apenas aprazível local para as reuniões de família, embora produzisse para seu próprio sustento.
Estávamos reunidos para as festas da Semana Santa, embora ainda fosse... terça-feira. Até meu pai – que era o único com compromissos de trabalho na cidade – já tinha dado um jeito de ir para lá desde o início da semana. Eu teria ainda que voltar à cidade, para prestar uma prova na quarta-feira, no colégio, e não poderia faltar. Mas me esforçaria para estar de volta no mesmo dia, no trem das sete. Eu já tinha quinze anos, poderia fazer, sem problemas, a viagem de apenas duas horas. Naquele tempo - década de quarenta - não havia tantas restrições para um adolescente viajar sozinho.
No dia seguinte, de manhã cedinho, ia saindo para a estação, quando vi Candinha na horta, mexendo nos pés de alface. Fiquei admirando-a, de longe. Como eu gostava daquela menina! Tão meiga, tão cândida, tão parecida com seu nome... Tinha sempre uma palavra de carinho para todos, e era mais ainda carinhosa comigo. Ou seria impressão minha? Não era também um sentimento fraternal, o que eu nutria por ela, era mais do que isso. Mas, eu me perguntava - por que? Não sabia me responder. Eu dizia: “Vou esperar você crescer, Candinha...” Ela sorria, como só ela sabia sorrir...
Candinha era filha da Tereza, que há muito tempo nos servia nos trabalhos da casa-grande. Tinha oito anos. Sete mais moça do que eu. Uma moreninha encantadora, alegre, gostava de agradar a todo mundo. Desprendida, nem mesmo aos seus brinquedos se apegava. Distribuía suas bonecas com as outras meninas da fazenda, na fantasia que elas eram filhas das coleguinhas. Dizia: “A filha não pode ficar longe da mamãe... Leva ela pra sua casa...

- Quer ele pra você?
Tirou o anel do dedinho e colocou-o na minha mão, fechando-a carinhosamente entre as suas.
- Não, Candinha... Você achou, é seu... É um anel de mocinha, não é de homem.
Abri a mão:
- Uma rosa... Uma rosinha minúscula... Você não é Cândida Rosa?...
- Por que não serve pra homem?
- Porque tem uma rosinha aqui em cima. Não é pra homem. Quando você crescer vai ficar bonitinho na sua mão. Seu nome não é Rosa, também? Então? É pra você usar, não eu...
- Ah, usa ele... Você também ainda é garoto... Se ficar comigo eu vou perder mesmo... Ó, é do seu tamanho. Nem se vê direito essa rosinha que você falou. Quando ele der no meu dedo você me dá de volta. Me promete que vai usar sempre, pra não esquecer que fui eu que te dei...
- Então está bem. Não vou mais tirar ele do dedo! Prometo...
- Murilo... Por que o meu nome é Cândida Rosa?
- Sei lá, Candinha... Você tem cada uma... Sua avó se chamava Rosa, talvez seja por isso... Por que o meu é Murilo? Papai e mamãe que escolheram...
E lá fui eu, direto para o colégio. Logo que a prova acabou, comecei a providenciar a minha volta. Pegaria o trem das cinco, e com duas horas de viagem estaria chegando à estação. Com mais uma hora de caminhada, iria juntar-me à turma ainda naquela noite. Era verão, de dias longos, quando a noite teima em não chegar.
Assim fiz.
Mas... o que eu não esperava era a brusca mudança do tempo. Já aboletado no trem, acompanhei a transformação do céu, que escureceu tão de repente, que no meio da viagem nuvens negras prenunciavam chuva grossa para dali a pouco. Não me preocupei. Com quinze anos, tudo é aventura. Com toda a certeza, além de chegar à fazenda meio de surpresa, já noite fechada, estaria todo encharcado. Teria meus quinze minutos de fama...
Não deu outra. Mal desci da “maria-fumaça”, pesados pingos d‘água começaram a cair. Caminhava pela estrada, larga, sem maiores problemas, pois o resto da tarde ainda me brindava com um pouco de claridade. Mas quando deixei a via principal e embrenhei-me pelo estreito atalho que demandava a fazenda, a coisa piorou. Logo era noite. A chuva, aos poucos se transformara num violento aguaceiro, castigando as minhas costas como se pequenas pedras despencassem do céu. Apesar da inusitada situação, eu seguia com relativa firmeza, embora quase às cegas. Conhecia muito bem o caminho, de tantas andanças por lá, mas já não via o chão, tropeçando aqui e ali, olhando para o alto, guiando-me apenas pela trilha de céu que as copas das árvores, dos dois lados, abriam para mim.
Não tardou nem mais esse artifício me ajudar. O céu desapareceu, no negrume da noite. Lembrei-me do meu isqueiro, e sua chama me fez avançar mais um pequeno trecho, até que, depois de vazio, passei a iluminar o caminho apenas com os rápidos flashes da sua pedra. Comecei a preocupar-me, pensando que jamais chegaria à casa-grande. Estava já exausto, naquela andança cheia de tropeços, até que, encharcado até os ossos, tiritando de frio, deixei-me cair na lama.
Não sei se dormi ou desmaiei.

2
Antero acordou com o dia claro, uma brisa suave e refrescante amenizando o calor, e o sol da manhã chegando até sua pele, coado entre as copas das árvores. Estava recostado, até com certo conforto, numa saliência do barranco, como quem ali houvesse se aconchegado para passar a noite. A terra estava muito seca.
As grossas roupas e o chapéu de feltro desabado estavam empoeirados, mas limpos. Curiosamente, ao vê-los assim, estranhou, pois lhe veio vaga idéia de ter atravessado um temporal.
Mas, não. Teria sido um sonho.
Levantou-se e retomou a caminhada pelo estreito atalho que levava à fazenda. Tirou o anel do dedo. Havia-o colocado, com receio de perdê-lo durante a noite. Guardou-o na panelinha de pedra que comprara na Vila. Era apenas um brinquedo de criança, mas não achara embalagem melhor para acondicionar o presente que levava para a sua amada. Passara a noite ao relento, quase sem dormir, ansioso, contando os minutos que o separavam da sua Rosa, e as estrelas que as frestas das copas das árvores o deixavam entrever.
Precisava chegar à fazenda com o nascer do sol. Queria encontrá-la a sós, e sabia que naquela hora da manhã ela estaria sozinha, longe da casa-grande, cuidando da horta de que tanto gostava. Além do que, o coronel Diogo não poderia sequer suspeitar do romance que sua filha mantinha com um simples capataz. Por isso usava o atalho, evitando chegar pela estrada principal.
Como será que ela receberia o presente? Enquanto caminhava, pensava na pequena fortuna que havia despendido em tão gracioso mimo. Buscara o ourives da Vila, descrevera com minúcia de detalhes como queria a delicada jóia, e o artista havia seguido à risca o que ele havia pedido.
 Foram economias de um ano de trabalho, penosamente amealhadas...
- Valeu a pena... Ah, minha Rosa... Uma rosa enfeitando outra ainda mais linda...

Não se enganara. Lá estava Rosa, mais linda do que nunca, embora despojada de qualquer enfeite que mais pudesse aumentar a sua beleza. Antero chegou sem ser visto, ficou em silêncio, de pé, bem atrás da moça, entretida em dar à terra mais uma pequena muda, enquanto cantarolava uma das modinhas que ouvia dos negros da senzala. Seus cabelos dourados reluziam ao sol da manhã, cobrindo-lhe as costas em cachos caprichosos.
Em tudo Antero contrastava com ela. Mulato claro, alforriado, pele curtida pela lida de sol a sol, no campo, indicando a miscigenação de raças. Porte atlético, tinha feições agradáveis, apesar da fisionomia carrancuda, necessária para impor respeito aos negros. Mas era sensível e humano, como convinha ao coronel, que não deixava ninguém maltratar seus escravos.
Olhava-a embevecido, em silêncio. “Meu Deus...” – pensava – “O que esse anjo viu em mim, que tanto a fez apaixonar-se?... Quem sou eu, para merecê-la?...”
Talvez por um sexto sentido, Rosa percebeu sua presença. Voltou-se, sorrindo:
- Antero... Você assim me assusta... De onde está vindo, tão em silêncio?...
Ele não respondeu. Ajoelhou-se ao seu lado, afagou-lhe os cabelos e depositou-lhe nas mãos o pequeno pote.
- Olhe... Para você...
A moça estranhou:
- Uma panelinha de pedra?... Já não sou mais criança...
Quando abriu o pequeno vaso, ficou um longo tempo em silêncio, fitando o inusitado presente. Tantas coisas passaram por sua mente... O namoro proibido, a diferença de classes, o coronel Diogo, a intolerância...
- Uma rosinha, Antero... Que lindo... Mas por que você fez isso? Nós não poderemos nunca...
- Para você sempre se lembrar de mim... “Nunca” é uma palavra que não existe, não pertence ao nosso futuro...
- Eu não o esqueceria, você sabe do meu amor... Como vou usar essa jóia tão linda, Antero? E papai, quando souber? Que vou dizer?
- Você vai usá-lo, um dia, não sei quando. Mas você vai usá-lo, eu sei. Guarde-o, é nossa aliança, é nosso símbolo, a argola do escravo que fui e a Rosa que você é... Somos nós dois, nesse anel...
- Não vou guardá-lo, Antero, vou escondê-lo. Ninguém poderá vê-lo, será nosso segredo. Um dia... – e sorriu – quem sabe... não é?...
Antero beijou-lhe a mão e levantou-se.
- Preciso ir, o patrão não pode dar pela minha falta... Use-o, use-o ao menos quando estiver sozinha...
Rosa ficou ali, ajoelhada, ainda com o pezinho de alface em uma mão e a singela cumbuquinha na outra, vendo Antero se distanciar. Como esconderia o anel? Nenhuma privacidade lhe era oferecida em seus aposentos, e a ninguém poderia confiar a guarda do presente.
- Uma panelinha de criança... Mas que idéia do Antero...
Estava assim absorta, quando viu seu pai se aproximando, montado no belo alazão. Assustada, enterrou o pequeno pote no canteiro, enquanto fingia cuidar da terra.
- Na horta, já de manhã cedo, minha filha? Foi bom encontrá-la aqui. Venha, vamos dar uma volta pelas terras. Preciso ver como estão as cercas. Parece que há gado fujão lá pelas bandas do outeiro. Vou trazê-lo todo para cá, isso aqui dará um belo pasto.
Um belo pasto? Ali, na sua horta? A que seu pai estava se referindo?
Ele estendeu-lhe a mão, e ela, com um salto ágil, pôs-se na garupa.
- Mandei refazer sua horta em outro sítio, será melhor para você.
Ela sorriu, nervosa. Um pasto ! E o anel?...
- Um pasto aqui, papai? Será o melhor lugar? Gosto tanto da minha horta...
- Filha, você verá que beleza de canteiros mandei preparar... Já estão prontos, e bem mais perto da nossa casa. Você não precisará andar tanto para cuidar dos seus canteiros.
Rosa não tinha como argumentar. Como sempre, o coronel Diogo seria soberano em suas decisões. O que ela poderia alegar para tentar impedir a destruição da sua horta? Que mais perto da casa seria ruim, que não mais poderia encontrar-se com o seu querido Antero?...
O passeio foi longo, voltaram apenas para o almoço. Rosa estava inquieta, à espera de uma oportunidade para recuperar o anel que havia enterrado. Quando o coronel recolheu-se para a sesta, correu ao sítio da horta. Mas uma surpresa a esperava, a horta já não existia. Durante o seu almoço a terra havia já sido revirada, e estava pronta para receber as mudas do novo pasto. Seria impossível descobrir onde estava enterrado o anel.

- Antero, o anel... Jamais irei achá-lo...
- Não se preocupe, Rosa. Será mais fácil para mim, procurá-lo. Não descansarei enquanto não revirar todo aquele sítio.
 Mas a pequena panelinha de pedra jamais foi encontrada. Antero não tinha mais onde cavoucar a terra, e Rosa jamais voltou à sua antiga horta. Os costumes eram diferentes, as inibições eram grandes, tudo rodava sobre o guante do coronel, que, embora não fosse um déspota, controlava a todos com mão de ferro.
Não se sabe se o poderoso coronel Diogo tinha suas desconfianças, o fato é que Antero logo depois foi mandado a trabalhar em outra das suas fazendas, e Rosa por muito tempo amargou sua ausência, até ser prometida em casamento ao filho de um fidalgo de boa estirpe.

3
O dia estava claro, uma brisa suave e refrescante amenizara o calor, e o sol da manhã chegava até mim coado entre as copas das árvores. Eu caminhava devagar, usufruindo as agradáveis primeiras horas da manhã. Mas estava confuso. Por que não viajara na noite anterior, se me desvencilhara dos meus afazeres bem cedo? Lembrava-me ter saído do escritório e seguido direto para a estação ferroviária, para ainda alcançar o trem vespertino, pois todos já estavam na fazenda, para os feriados da Semana Santa, esperando-me à noitinha.
Teria viajado na véspera? Mas, então, onde passara a noite? Por que estava no atalho que levava à porteira secundária da fazenda, e não na estrada principal, o que seria natural? Lembrava-me também vagamente de um temporal. Mas minhas roupas, o caminho, tudo estava seco.
Estranhamente, examinava minha mão, sentindo falta de um anel. Mas... nunca usei anéis, porque aquilo agora?
Muitas perguntas, nenhuma resposta.
Porém as saudades de Cândida eram maiores do que todas as minhas dúvidas e questionamentos, e faziam-me esquecer as imprecisões do meu raciocínio. Mais uma hora, se tanto, e estaria mais uma vez em seus braços...
Minha mãe estava na porta da varanda, quando cheguei à fazenda.
- Então, filho, fez boa viagem? Foi muito bom você ter deixado para vir hoje cedo. Você não conseguiria ter chegado aqui, debaixo do dilúvio que caiu ontem à noite... Então, conseguiu a folga com o chefe?
Cresceram minhas incertezas. Dilúvio? Não havia sinais de chuva no caminho, com certeza foi uma dessas chuvas de verão. Mas, e todo o resto? Não deixei que ela percebesse a insegurança do meu raciocínio.
- Consegui, mãe. Viagem boa. Onde está Cândida?
Ela esboçou um sorriso:
- Estava demorando a perguntar por ela... Onde você acha que ela está? Lá na horta, é claro... Não sei o que tanto a atrai para lá...
Tomei o caminho da horta. Desde longe a vi, ajoelhada entre os pés de alface. Estava de costas para mim. Nunca me cansaria de admirá-la... Cândida era uma linda moça, na juventude de seus dezoito anos. Sua pele morena, seus olhos azuis, seus longos e cacheados cabelos negros, bem refletiam tudo o que lhe ia na alma. Não bastasse sua beleza suave, seu sorriso espontâneo, não havia quem não gostasse de seu jeito de ser, sempre disposta a ajudar quem quer que fosse. Um dia eu havia dito a ela: “Vou esperar você crescer, Candinha...” Eu tinha apenas quinze anos, e ela era uma garotinha encantadora...
Eu esperei que ela crescesse...
Distraída, não me viu chegar. Estava ajoelhada em frente a um canteiro, extática, segurando algo com as duas mãos.
- Cândida...
Ela voltou-se repentinamente.
- Antero... Você assim me assusta...
- Antero?... Quem é Antero?...
- Murilo... eu disse Antero?... Ora... Por que disse Antero?
- Não sei... Fico com ciúmes, assim... – brinquei – O que é que você tem aí?
- Coisa estranha, Murilo... Olhe o que eu achei, cavando a terra...
Ela estendeu-me uma panelinha de pedra, pequenina. Ao vê-la, um torvelinho de pensamentos veio-me à cabeça, confundiram-se presente e passado, épocas remotas eram-me mostradas em flashes de inusitadas lembranças. Rosa, Antero, Cândida, Murilo... quem éramos?  
Falei, de inopino:
- Um anel, Cândida... Um presente para você... É um anel que tem aí dentro...
Ela não percebeu a angústia silenciosa que começou a me dominar.
- O que, Murilo? Que brincadeira é essa? Um anel, dentro de uma panelinha, enterrada no canteiro... Quando foi que você escondeu aqui esse presente para mim?
Cândida sorria, antegozando o que pensava ser uma brincadeira de namorados. Respondi com uma delicada ordem:
- Abra...
Meu coração latejava nas têmporas. Eu não sabia o motivo da minha esdrúxula reação. Mas havia um anel dentro daquele pequeno pote, eu sabia.
- Uma rosa... Uma rosinha minúscula... Você não é Cândida Rosa?...
Eu sabia como era o anel, embora ainda não o tivesse visto. Repeti aquelas palavras com a sensação de que já as havia dito, algum dia. E imaginava Candinha, menina, com o anel dançando em seu dedinho...
“Quer ele pra você?...”
Cândida abriu o brinquedo com dificuldade. Estava emperrada a tampa, presa pelo barro ressecado, como se há muitos anos não fosse aberta.
- Mas que anel lindo, Murilo! Que maneira diferente de se ganhar um presente! Tão sujinho... Há quanto tempo está aqui? Como você sabia que eu iria achá-lo?
- Foi Antero que o colocou aí, Cândida. Não fui eu.
- Ora, Murilo. Não me venha agora com ciumadas... Só porque mencionei o nome de alguém que nem existe... Não sei por que disse aquilo, não sei que nome é esse...
Eu estava apreensivo. Os fatos vinham-me aos poucos à tona, confusos.
- Cândida, ainda que eu quisesse, não saberia lhe explicar. – eu pensava em voz alta – Antero e Rosa... O nome de sua avó era Rosa...
- Por isso meu nome é Cândida Rosa... Mas meu avô não era Antero... Por que eu chamei você de Antero?...
- Esse anel era de sua avó, Candinha. Antero deu-o a ela... Não sei como tenho tanta certeza disso. Você tinha oito anos, quando... Eu não sei, não sei... Está tudo confuso... Abrace-me, meu amor...
Ela obedeceu-me, sem nada compreender. Abraçou-me ternamente, não me pediu explicações. Eu não saberia dá-las. De nada se lembraria, tinha apenas oito anos...  
“Quer ele pra você?...”
Os fatos voltavam-me à mente, fragmentados.
Ficamos longo tempo enlaçados, eu sem palavras que exprimissem a minha alegria. Éramos nós dois, desta vez livres, distantes da benévola prepotência do coronel Diogo...
Então, apertei-a mais contra o meu peito, e disse-lhe:
- Rosa... Ah, minha Rosa, meu amor... enfim estamos juntos... para sempre..

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quinta-feira, 23 de junho de 2011

O ARQUEIRO ALADO





Preso ao chão,
Contempla o infinito.
Tenta alcançá-lo com seus sonhos,
Faz das estrelas o alvo das suas flechas.

Sabe que precisa caminhar,
Desvencilhar-se de raizes profundas -
- Base estéril, fruto da longa estagnação.
Sabe que cada passo
Será o arrancar de cascos plantados,
Será o desprover-se do alimento farto e cômodo
Da Mãe Terra.

Será - ainda - o fincar de novo apoio
E ver que novas raizes ressurgem...
Será mais uma vez a busca do sustento fácil,
Pela fome de chão, de base firme, de colo maternal.

Porém, cada passo,
Cada sugada no seio da mãe terra
Será também o lento surgir das tenras plumagens
Que lhes hão de substituir os braços.

Cairá, um dia, de suas mãos, o arco dos sonhos
E alvas penas de asas vigorosas
Sentirá fincadas em seus músculos fortes. Enrijecidos,
Porque alimentados da terra.

Prenúncio de largos horizontes
Então, maior será a força das asas
Do que a dos seus cascos enraizados.
E o vôo acontecerá, definitivo,
No batimento frenético dos braços transmudados.

A Mãe Terra verá elevar-se o filho amado
Sentindo na face os restos do alimento
Que se desprenderão de suas patas
Tão inúteis, agora, com suas raizes expostas...

segunda-feira, 20 de junho de 2011

DEPRESSÃO


 

Hoje é quatorze de dezembro. 2004. Daqui a dois dias, completo meus bem vividos setenta e dois anos. Se digo bem vividos, não será porque andei nadando em dinheiro, tampouco porque tive algum tipo de projeção social ou profissional. Não; na verdade, fui um ilustre desconhecido, felizmente.
 Vivi bem, muito bem (até - digamos - um a-no atrás), porque tenho mulher, filhos e netos adoráveis, minha vida era de paz e harmonia, exceto por períodos curtos e normais de chuvas e trovoadas, e de um jeito ou de outro, sempre tive meus momentos de felicidade.
Mas, de um ano para cá, não sei o que me fez mudar de rumo. Tenho vivido em completa apatia, não me interesso por nada, não tenho vontade nem de chorar nem de rir, não consigo conversar com ninguém, não, não, não... Minha vida tornou-se uma sucessão de nãos...
Lembro-me que tudo começou há um ano, no dia do meu aniversário. Eu estava só, e comecei a questionar-me sobre meus setenta e um anos... o que tinha feito, o que não tinha... e acabei questionando-me demais, pintando minha vida com tintas muito escuras, talvez sem razão, mas indo muito fundo, no poço, de onde até hoje não consegui sair...
E, curioso... Parece-me que para compensar essa total ausência de humor, começaram a acontecer fatos estranhíssimos comigo, e, embora eu esteja sentindo-me desse jeito, confesso que, apesar de insólitos, esses fatos eram muito agradáveis.
Nunca os comentei com ninguém. Mas a-gora resolvi pô-los no papel, porque já posso torná-los públicos. Tudo já se esclareceu.
A coisa acontecia assim: de vez em quando eu me via, súbito, retornar a uma data do meu passado. Retornar com o corpo, mas não com a mente. Uma data qualquer, se não importante, pelo menos de um dia em que alguma coisa ficou marcada em minha vida. Coisa boa. Quando sentia acontecer isso, examinava-me, ou num espelho, se o tivesse à mão, ou simplesmente tocava-me. Fisicamente, estava mudado. Retornava àquele dia, vivia aquelas horas como se estivesse naquele tempo. Mas a mente, esta era a de hoje. Nenhum dos protagonistas que dividiam comigo a cena - ou as cenas, do passado e de hoje - percebia algo diferente. 
Continuávamos conversando como se tudo estivesse acontecendo normalmente. Eu conseguia manipular os fatos, tudo o que acontecia dali para adiante, mas sem modificar o futuro, pois obviamente já o conhecia. Não tentava mudá-lo. Não que eu não quisesse. Não podia. Sabia das coisas que dariam certo, como daquelas que sairiam erradas, mas, as vezes que tentava mudá-las, voltava subitamente ao meu entediado presente. Percebia não ter esse controle. As pessoas com quem eu “contracenava” não percebiam nem minha entrada nem a saída de cena, pois se aquilo tudo já havia acontecido, sem nunca havermos comentado... Tanto não percebiam que eu, hoje, não me lembro de haver notado nada diferente nas ocasiões em que vivi os insólitos traslados. Não sei como ficava a coisa, depois que tudo retornava ao normal.
Exemplos? Tenho muitos. Um dia, dirigia o meu carro, quando toda a cena mudou - continuava dirigindo, porém não mais o Verona, mas o meu velho Chevrolet l936, e na via Dutra, a caminho do Hotel Vila Forte. Estávamos em 1962, e Paulina e as duas crianças viajavam comigo. Foi a primeira vez que aconteceu.
Olhei para ela, moça, para meus filhos, duas crianças, depois para mim, pelo retrovisor, e vi-me um jovem de 30 anos. Ora, eu tinha 71 anos e estava naquele carro com a minha mente de 71 anos, mas... num corpo jovem. Curioso - não tive necessidade de questionar-me sobre o que seria aquilo. Não que achasse a cena normal; sabia que não era. Simplesmente não senti necessidade.
Como tirei muitas fotos naquele passeio, poderia, se quisesse, saber até o dia exato em que se deu a cena. O mês, lembro-me bem - julho. Julho de 1962. Quarenta e dois anos atrás.
Não me alterei. Disse para Paulina: “Essas férias vão ser muito boas. Vamos ficar uma semana no hotel e vai dar tudo certo.” “Como você sabe?” “Não sei. Mas vai ser um ótimo passeio.” Para ela, eu estava prevendo o futuro, como uma brincadeira apenas. Somente aduziu: “Que bom”. Comecei então, a querer contar a ela o que aconteceria no hotel. Quando tentei pô-la a par do nosso futuro, no mesmo instante vi-me, outra vez, ao volante do Verona. E a coisa ficou por aí.
De outra vez, passei do Verona para o Opala em que viajamos para o sul. Agora estávamos, na viagem, apenas eu e Paulina. Já não me assustei com o insólito traslado. Novamente conferi minha estampa no retrovisor. Lá estava eu, nos meus 46 anos de idade. Mas... desta vez eu sabia que o carro ia quebrar, quando faltassem mais ou menos uns cem quilometros para chegarmos a Curitiba; que eu iria tomar providências erradas para consertá-lo e somente após essa tentativa frustrada, teríamos uma carona até nosso destino, de onde, então, voltaria para rebocá-lo, no dia seguinte.
Deixei correr a coisa, pois, apesar dos fatos, como eu sabia que tudo daria certo, não me foi penoso relembrar. Foi até divertido. É claro que o carro quebrou e ficamos tentando a carona. Paulina começou a ficar assustada, pois a tarde findava e já iria escurecer. Para acalmá-la, eu lhe disse: “Não se preocupe, que vem um Fusca aí que vai nos dar carona”. Mal acabei de falar, voltei ao volante do Verona...
Mas os insólitos episódios não se apresentavam em ordem cronológica. Depois destes dois que narrei, e mais outros que bem guardo na memória, vi-me, recentemente, transportado de um apartamento no hotel, em São Lourenço, onde estávamos hospedados, para a casa que nos serviu de abrigo, em Teresópolis, em nossa... noite de núpcias. Voltava a 1958. Mais uma vez, tudo o que iria acontecer eu já sabia nos menores detalhes. Mas desta vez não tentei predizer o futuro, pois sabia que, se o fizesse, retornaria ao presente. Tive o prazer de viver uma segunda lua de mel, especial...
Quando aconteciam essas coisas, eu não fazia a menor idéia como ficava a cena no presente, no caso, no apartamento do hotel em S. Lourenço, pois, momentaneamente, pelo menos, eu não estaria lá.
Porém, depois de usufruir novamente daqueles momentos inesquecíveis, insinuei contar à Paulina algo que sabia iria acontecer. Como sempre, foi o suficiente para que retornasse, em um átimo de segundo, aos meus quase 72 anos - pois isso aconteceu há poucos meses atrás - para São Lourenço.
Ficava dando tratos à bola sob o porquê desses maravilhosos e desconcertantes flashes. Não fazia força nenhuma para descobrir a sua origem ou a sua patologia, se é que a havia. Era como se eu tivesse a galinha dos ovos de ouro. Não deveria pesquisar muito, ou iria perdê-la. A sensação de tomar parte, pela segunda vez, em acontecimentos que eu já conhecia era incrivelmente agradável. E tais fatos ajudavam-me a suportar o meu estado depressivo, pois mostravam-me momentos felizes e alegres da minha vida.
Mas noutro dia a coisa foi diferente. Eu havia ido ao velório de um amigo. Na hora do sepultamento, quando todos se encaminhavam para o jazigo, acompanhando a urna fúnebre, parei em uma sepultura, pois pensei ver um nome conhecido gravado no mármore. Então, aconteceu novamente.
A cena mudou para um outro túmulo, inteiramente diferente daquele que eu estava olhando, e havia uma coroa sobre ele. Olhei para onde devia estar seguindo o acompanhamento do carreto fúnebre e não vi ninguém. Antes, era meio-dia de um sol causticante. Agora, estava em um entardecer e com o tempo carregado. Nuvens negras apontavam um temporal iminente. Aquela cena não era do meu passado, pois, se fosse, obviamente eu me lembraria dela. Pela primeira vez, mostravam-me algo que eu ainda não havia presenciado. Examinei-me. Eu não estava mais moço, como em todas as outras vezes. Minhas mãos enrugadas não mentiam. Ou eu estava no tempo presente, ou no meu futuro.
Olhei o túmulo, em frente ao qual eu parei. Não havia inscrição nenhuma, tampouco algum enfeite. Era apenas um bloco de alvenaria, caiado, encimado por uma laje de concreto, e sobre ela uma coroa, como já disse. Nela, uma faixa preta com letras douradas: “Maurício, saudades de como você era”. Nem quem havia remetido a coroa identificou-se.
Pensei, numa reação natural: “Deve ser outro Maurício...” Mas por que seria outro e não eu? O que, ou quem, estaria querendo mostrar-me o túmulo de outro Maurício, se aqueles episódios insólitos estavam acontecendo comigo? Estava acostumado a vivenciar o meu passado. Mas, o futuro...
Para que dia, e que ano, eu havia sido remetido? Tomei cuidado, então, de não pensar em nada que pudesse me devolver ao meu tempo, como sempre acontecia. Não sairia dali enquanto não soubesse quando teria acontecido aquela cena.
- Senhor... Por favor, já vamos fechar. É melhor que se apresse, vem muita água por aí.
Era um funcionário do cemitério, que me interpelava. Estava tão absorto em meus pensamentos, que cheguei a levar um pequeno susto.
- Ah, sim, obrigado. Já vou sair. Por favor... diga-me, que dia é hoje?
- Dezesseis de dezembro. - E, indicando a lápide, com o beiço - Coitado...
- Por que “coitado”?... Dezesseis de dezembro... de que ano?
- Dois mil e três. O senhor está na dúvida por que?
- Dois mil e três?? Não, nada... É que eu... não sei se é o Maurício que conheço.
Foi a melhor desculpa que consegui imaginar. O funcionário pareceu satisfeito com a resposta, mas eu não. Como, dois mil e três? Então não era do meu futuro, a cena? Eu tinha certeza de nunca tê-la vivenciado no passado, como fiz em todas as outras vezes que me acontecia “viajar” no tempo.
Ele completou, olhando desconsolado para a tumba:
- Ninguém veio para o velório.
- Ninguém?
- Nem no velório, nem no sepultamento. Chegou de manhã, e de tarde já estava aí, ó.
- E quem mandou esta coroa?
- Não sei. Talvez alguém que se importava com ele. - E, após uma pausa : - O senhor vem comigo?
- Vou já. Só mais um instante.
Eu sabia que se me afastasse dali a cena se diluiria. Dezesseis de dezembro... meu aniversário... Mas, do ano passado? Poxa, eu me lembraria dessa cena!
Olhei para trás. O homem já ia um pouco distante. Eu tinha que pôr aquilo em pratos limpos. Arriscando voltar ao meu presente, chamei-o.
- Senhor, por favor volte aqui!
O funcionário virou-se, sorriu e caminhou em minha direção.
- Eu sabia que o senhor ia me chamar...
- Por que?
- Porque seu nome é Maurício e o nome que está escrito na coroa é Maurício.
- E daí? Não somos os dois únicos Maurícios por aqui. Quem é você?  É funcionário do cemitério?
Ele mantinha um discreto sorriso nos lábios. Não me respondeu.
- Não há dois Maurícios.
- Claro, esse pobre coitado morreu e está enterrado.
- Está mesmo. Foi uma pena. Era o verdadeiro, e morreu... Morreu para a mulher, para os filhos, para os amigos, para o mundo... no dia do aniversário...
- O verdadeiro?
- É, e o que ficou já há um ano anda por aí, perambulando, sem rumo, uma sombra do outro...
- Quem é você? Como sabe destas coisas? Eu não morri!
Eu já estava meio assustado. Mas, mais uma vez ele não me respondeu.
- Sabe? Quem está enterrado aí pode até ressuscitar... É só querer...
Ele deixou a frase no ar e tornou a se afastar.
- Olhe que vem chuva aí...
Fui atrás dele. Precisava esclarecer de uma vez por todas aquele diálogo, embora já desconfiasse quem eram os dois Maurícios.
Mas... não dei dois passos, e, como das outras vezes, vi-me novamente acompanhando o meu amigo à sua última morada, debaixo de um causticante sol de meio-dia.
Só então percebi que aquela cena havia sido mostrada a mim, sim, porém com outras tintas, no meu aniversário, há exatamente um ano. E que durante um ano aqueles maravilhosos flashes tentavam acordar-me para a vida, a verdadeira vida que morreu comigo, há um ano atrás.
Era só ressuscitar.

                                                                          




quinta-feira, 16 de junho de 2011

CHEIROS, LUZES E SONS


11 de maio de 2011



Infância feliz.

Ruído de enceradeira, ao longe, no meio da manhã.
Cheiro do lanche de café com leite, pão e manteiga.
Bonde passando lá na esquina.
Cheiro do forno da padaria, sem ser cheiro de pão quente.
Pregão do vassoureiro.
Cheiro de chuva, na terra fresca.
Banho tomado, crepúsculo. hora de espera do jantar.
Apito da fábrica, às cinco horas.
Chuva e frio em dia cinzento, através da vidraça.
Lavadeira batendo roupa na beira do tanque.
Medo do pio da coruja, nas noites soturnas.
Tardes silenciosas e vazias dos domingos.
Crianças brincando, ao longe.
Sol coado pela névoa morna do outono.
Cheiro de bolo quente, no meio da tarde.
Banho de chuva.
Tilintar das bolas de gude, na sarjeta.
Cheiro de mato molhado, nos terrenos baldios.
Vozes conversando baixinho, gente sentada em cadeiras na calçada.
Algazarra das matinês de domingo.

Não sei onde foi a sua infância, mas se foi nos anos quarenta, em uma rua sombreada, calma e silente, em um bairro sossegado, então pode ter sido igual à minha.