domingo, 29 de maio de 2011

A AGENDA



Domingo, 31 de dezembro. Mil novecentos e oitenta e três.
Eu estava sentado num banco da praça, pensando na vida. Que, afinal de contas, não era nem boa nem ruim. Uma vida mais para o sem graça, de dias rotineiros que se arrastavam entre a casa e o trabalho, este também meio parado, onde eu fazia todos os dias a mesma coisa, tipo carimbar documentos sem expressão, o expediente inteiro. Mas era um emprego seguro. Se eu não aprontasse uma justa causa, ninguém me mandaria embora. O governo garantia o meu pão de cada dia.
Pensando na vida, pensando que à noite iria ver os fogos - tomara que não chovesse, o céu estava nublado - que no dia seguinte seria feriado, que bom, que vidinha sem sal. Mas nem por isso triste ou revoltado. Não. Conformado, sim. Afinal, estava tudo bem. Vivia sozinho, nunca tivera grandes sonhos, nem pequenos, nunca fora ambicioso. Tinha minha tv de vinte e nove, meu dvd. (Fiz questão de comprar sem karaoke. Que coisa ridícula, aquela cantoria.) Se, no fim do mês, se sobrasse algum para uns filminhos, estava bom.
Tudo bem, mesmo? Sei lá. Essa mania de dizer tudo bem pra qualquer coisa. Acho mesmo é que gostaria que tudo fosse diferente. Gostaria, sim. Afinal, era uma vida meio besta a que eu levava, não passava de uma sequência de dias absolutamente iguais, estivesse eu trabalhando ou me divertindo. Divertindo, isto é, sentado na cama, em frente ao dvd, que no meu caso queria dizer: deita, vira e dorme.
Mas pensar na vida é uma coisa, modificá-la é outra bem diferente.
Estava assim, quando vi aproximar-se o homem. Caminhava lentamente, mãos para trás, olhando para tudo, como quem examina a natureza. A praça estava vazia e o dia frio, curioso, apesar de dezembro. “Já vi tudo”- pen-sei - “vai sentar-se aqui ao lado e puxar um papo. Papo de mais-um-ano-que-se-foi. Tudo bem...”. O tudo bem, novamente. Mas o cara passou direto, sem antes sorrir para mim, caminhou até a estátua do centro da praça e colocou numa platibanda o que me pareceu ser um livro de capa preta. Tranquilamente, se foi, com as mãos para trás.
Estranho, pensei. Ele não esqueceu aquilo ali. Deixou lá consciente, o caderno. Esperei que ele se afastasse - pois não pensei em devolvê-lo, lógico, se ele o deixou - e fui até lá. Tomei o livro nas mãos. Não era um livro, era uma agenda. E estava em branco. Menos na primeira página, onde havia uma espécie de dedicatória, manuscrita, com letra desenhada: “Esta agenda agora é sua. Anote nela os seus desejos. Faça bom proveito. Espero que ela lhe ajude tanto quanto me ajudou.” Ass: Um amigo. Em cima da dedicatória, o ano: 1984, também manuscrito. O ano que ia começar no dia seguinte. Procurei pelo homem, havia sumido enquanto eu me distraia com o caderno.
Mais estranho ainda, pensei de novo. Examinei o caderno. Estava meio surrado. Como qualquer agenda, cada página correspondia a um dia do ano, mas nesta os sábados e domingos ganhavam folhas inteiras. Só tinha dias e  meses, era dessas que servem para qualquer ano. Nos rodapés, cada página tinha uma frase tipo “Conte os dias pelos botões de flores e não pelas pétalas caídas”,“O próximo está mais próximo do que pode parecer”, etc. Não folheei mais, parei em dois de janeiro. Detive-me na dedicatória. 
Pomba, de que adiantaria anotar os meus desejos? Eu anotaria meus compromissos, se os tivesse. Mas os meus desejos? Vontade é uma coisa que dá e passa, alguém me disse uma vez. Levei a agenda para casa, afinal, “ela agora era minha”, dizia a dedicatória. Ainda me lembro que coloquei-a num canto, tomei um bom banho e fiquei aguardando a hora de ir para a praia ver os fogos de fim de ano.
E fui. Como todos os anos, foi tão bacana quanto rotineiro. Nem chover, choveu. Assim que acabou a pirotecnia, voltei para casa, para o meu dvd. Deitei-me, virei-me e dormi. Como se cumprisse uma obrigação.
No dia seguinte, acordei um pouco mais tarde - era feriado. Abri os olhos, deparei com a agenda na mesa de cabeceira. Curioso, folheei-a. Estava lá, anotado no dia primeiro, e com a minha letra: “Andar na praia.”
- Mas... eu não escrevi nada... - deixei escapar em voz alta - Ou será que escrevi? Não, não estou maluco... Andar na praia... que idéia! Virei sonâmbulo, para escrever dormindo? Eu nunca ando na praia...
Folheei-a mais uma vez. Li a frase alentadora do rodapé: “O perigo que o trovão nos incute já foi anulado pelo relâmpago”. Bonito e correto. Deixei-a na mesinha e fui até a janela. Realmente, eu morava num lugar privilegiado. Apartamentozinho pequeno, mas numa rua calma e arborizada, perpendicular à praia. Por isso, da janela se via um retângulo do céu, do mar e do calçadão com as pessoas andando pra lá e pra cá. Nunca havia prestado muita atenção naquela nesga de beleza. Quanta gente!
Andar na praia... Até que...
Tomei meu café e desci. Cumprimentei o Raimundo, soube das novidades da portaria e ganhei a rua. Eu também ia andar na praia.
Agora estava fazendo parte daquela multidão, andando, embora bem mais devagar, que eles pareciam todos estar indo tirar o pai da forca, sacudindo os braços, virando o pescoço para um lado e para o outro, uns com as mãos na cintura, outros balançando os ombros. Todos de bermuda. Eu me sentia um peixe fora d’água, de calça comprida, camiseta, sapato e meia. Mas estava achando legal. Muito sol para o meu gosto, mas legal.
Depois, em casa, senti-me cansado. Havia andado bastante. Mas era um cansaço diferente, apenas físico, só os músculos doíam, nada mais. Diferente de quando eu chegava da repartição, doido pra tomar um banho e cair na cama.
Passou-se o resto do dia, eu na já minha conhecida rotina, que me fez esquecer até da agenda. Aliás, o dia, não. A semana. Quando me lembrei dela, já era sexta-feira outra vez. Curioso, então, abri no dia 6, sábado. Lá estava: “Andar na praia. De bermuda.” Que diabos, eu não havia escrito aquilo. Mas era a minha letra. E ainda me mandando ir de bermuda. Meio invocado, no dia seguinte lá estava eu no calçadão. Tive que passar antes numa loja e comprar uma bermuda, não tinha nenhuma.
Era realmente diferente, sentir o vento batendo nas pernas peladas. O sol não me parecia mais tão quente. Sem perceber, comecei a andar mais depressa. Daí a pouco, já estava no mesmo ritmo daquele povo, andando sem destino. Voltei para casa, tomei um banho, mas não caí na cama. À tarde, para surpresa minha, lá estava eu de novo, de bermuda, agora andando calmamente, apreciando o dia que se esvaia em cores cambiantes.
Já havia mais de uma semana que eu estava indo às minhas andanças todos os dias, antes de ir para o trabalho. E todos os dias abri-a a agenda, mas as páginas agora estavam sempre em branco. Mas as frases de rodapé bastavam para tornar meus dias melhores.
Até que um dia, mais ou menos um mês depois, lá estava, novamente num sábado: “Ir à praia”. Não havia dúvida que aquele livro estava conversando comigo. Eu não escreveria “ir à praia”. Há mais de vinte anos eu não sabia o que era uma praia, nem sunga tinha. Estava desacostumado da água fria, salgada, das ondas, de tudo. E morando ali pertinho! Mas senti que não devia desobedecer. Lógico, antes passei na loja e comprei uma sunga - bem discreta, preta, parecia uma cueca. Fui, confesso que até encabulado.
Que surpresa! Como era bom o banho de mar, tão esquecido dele que eu estava! Quase fui atropelado pelos surfistas, caí, enrolado pelas ondas, no meu tempo se chamava caldo. Levantei-me igual a um bêbado, fiquei meio sem graça, olhei para os lados, ninguém estava nem prestando atenção em mim. Voltei para dentro do mar, pulando igual a uma criança, rindo sozinho. De tarde, estava ardendo e vermelho que nem um camarão. Mas, feliz.
Passei a levar a agenda mais a sério. Resolvi não apurar se era eu ou não, quem estava escrevendo. Mas no fundo tinha certeza que eu não escrevia nada, tampouco era sonâmbulo. Às vezes, passavam-se dias e dias – eu agora a consultava todos os dias - e nada aparecia escrito. Uma noite, resolvi ficar de vigília até amanhecer, e fiquei, a duras penas. Mas pela manhã a página continuava em branco, só com a frase do rodapé.
- Como é, vai escrever ou não vai?
Ri de mim mesmo, querendo dialogar com um livro.
No dia seguinte, lá estava: “Ir ao cinema. Ver Ponto Final”. Ora essa, eu estava mesmo querendo ver se já havia chegado ‘Ponto Final’ na locadora. Gostei da idéia, fui até lá. Mas todas as cópias estavam alugadas. Não dei muita bola. Tentaria no dia seguinte.
No outro dia, a agenda foi dura: “IR AO CINEMA”. Assim, com todas as maiúsculas. Pelo jeito, dvd nunca mais. Não é preciso dizer que fui, gostei muito do filme, enfim, um Woody Allen. Daí para a frente comecei a levar a coisa a sério. Agora tinha a certeza que não era eu mesmo, quem escrevia. Mas a letra continuava sendo a minha.
E a história evoluiu. Das dicas de vida, passou aos conselhos. Sugeria-me ser mais afável, mais participativo no trabalho, mais aberto com os colegas, enfim, estava tentando tirar-me - tentando, não, tirando-me - daquela vidinha besta e sem sal que era a minha existência. Eu estava consciente do que acontecia, e depois daquele “ir ao cinema” com letras maiúsculas, nunca mais meti-me a querer saber o que estava acontecendo. De vez em quando, voltava à primeira página: “Anote nela os seus desejos”. Só que eu não estava anotando nada, acho que eles estavam aparecendo sem meu controle, ou melhor, sem nem eu saber que tinha aqueles desejos.
Um dia - estávamos já no inverno, as idas à praia já não eram tão frequentes - li: “Chamar a Laurita para jantar.”
- O que?!... Só me faltava essa...
Laurita era uma colega da repartição. Sempre muito alegre, simpática, dava-se bem com todos. Divorciada já há muito tempo, e até onde eu sabia, livre e desimpedida. Mas nunca me havia dado mais atenção do que a mínima necessária para um bom relacionamento no escritório. Agora, essa? Será que ela era um “desejo” meu, também?
Relutei. Jantar com a Laurita? A troco de nada? Não chamei. No dia seguinte, abri a agenda com medo. Estava em branco. O livrinho era paciente, parecia saber que eu iria capitular.
O dia custou a passar, a cada cruzada com Laurita pela sala parecia-me que ela esperava que eu falasse alguma coisa. Bobagem, se ela não havia lido a agenda... Pura idéia minha. Fui para casa sem falar nada. No dia seguinte, agenda em branco novamente.
No terceiro dia, nem abri o livrinho, com medo das letras maiúsculas. Mas mal cheguei na repartição, procurei Laurita e soltei, de chofre:
- Laurita!
O chamado saiu tão alto que ela levou um susto.
- Credo, Téo, que houve?
- Você tem algum compromisso para hoje à noite?
Eu suava em bicas. E era inverno.
- Eu? Ora... não... Por que?
- Estou lhe convidando para jantar.
Ela não escondeu a surpresa.
- Jantar com você?
- É...
Eu já estava arrependido. Como fui dar bola para aquela agenda? Agora...
Ela, então, segurou-me pela mão e levou-me até a janela, um lugar um pouco mais reservado da sala.
- Vem cá, Téo.
 Sem largar a minha mão, olhou-me bem nos olhos, longamente, e não disse nada, preenchendo uma longa pausa apenas com seu sorriso. Depois, falou baixinho, como se houvesse alguém por perto :
- Você não sabe há quanto tempo espero por esse convite...
Eu não sabia mesmo. Jamais teria percebido. Logo eu, o cara mais sem graça da repartição, o mais sem jeito... A princípio achei que caçoava de mim. Mas, não; não a Laurita. Ela não seria capaz de brincadeira tão humilhante...
- Sério, Laurita? Há muito tempo?
- Você mudou muito, Téo... De uns meses para cá você é outro homem, mais alegre, parece-me até que mais feliz... Tão diferente do Téo que conheço há tantos anos... Que houve com você?
- Aprendi a viver, Laurita...
- Aprendeu? Quem anda por ai ensinando os outros a viver?
- Você nem imagina... Não foi “quem”, foi “o que”...
Felizmente o assunto morreu por ali.
Desse dia em diante, minhas conversas com a agenda tinham um único objetivo: Laurita. Eu tinha compromissos, agora. Eu tinha alguém com quem repartir minhas alegrias, meus cinemas, minhas praias, minha vida, enfim. E não precisava dividir tristezas, além das necessárias. Não que não as houvesse; mas aprendi a guardá-las para mim, quando ninguém pudesse ajudar-me a acabar com elas. No rodapé de uma página de dezembro, a lembrança da frase era clara: “Não sature os ouvidos de quem não tem como lhe ajudar. As suas tristezas passarão a ser também do seu próximo. É o que você quer?”

Segunda-feira, 31 de dezembro de mil novecentos e oitenta e quatro.
Acordei cedo, apesar do feriado. Alguém já me disse que sempre, nos feriados, faz questão de acordar de madrugada, levantar-se e sentar no banco da praça, para ficar mais tempo sem fazer nada. Olhei para o lado, Laurita ainda ressonava, tranquila. Sentei-me na cama e busquei a agenda na gaveta da mesinha, a ver o que ela me reservava para o último dia do ano.
Abri a capa, passei a primeira, a segunda, a terceira folha. Tomei todas as folhas com o polegar e desfolhei-as. O livro estava totalmente em branco. Procurei a dedicatória, dirigida a mim - nada mais havia. “Com certeza”- ironizei - “o sonâmbulo aqui apagou tudo durante essa noite...”
Não. A agenda havia era cumprido a sua missão.
Abri, então, novamente a primeira folha, e escrevi, com letra bonita e desenhada: “Esta agenda agora é sua. Anote nela os seus desejos. Faça bom proveito. Espero que ela lhe ajude tanto quanto me ajudou. Ass. Um amigo.”
Daqui a pouco, vou lá na praça, deixá-la numa platibanda da estátua, para quem a quiser. Depois, vou dar uma volta e fazer uma horinha para ver os fogos, na praia. Com a Laurita.























































sexta-feira, 27 de maio de 2011

OS RELÓGIOS

DIREITOS AUTORAIS RESERVADOS


 Eu caminhava pela rua um tanto distraído, de olhos baixos. Pensava na vida, sempre no mesmo problema que sofridamente carregava há tanto tempo. Vinte anos, talvez mais. Janice nunca saiu da minha mente. Como a fizera sofrer! Como tinha sido imaturo e egoísta! Somente a tragédia que se abateu sobre nós acordou-me para a realidade.
Tarde demais...
Brinquei com seus sentimentos, joguei fora uma vida inteira que, por certo, seria de felicidade. E eu a amava, se é que o que sentia podia ser chamado de amor. Não, não era amor. Era possessão, uma infantil possessão na qual eu me afirmava como homem... que não era. E ela mansa, paciente, esperando por mim com a certeza de que um dia eu acordaria para a vida. Mas nunca despertei, enquanto a tive. Somente depois que a perdi para sempre, é que pude aquilatar o que seria a sua falta.
Suas últimas palavras foram para mim, naquela noite chuvosa, no meio do asfalto, a cabeça descansando em meus braços. Um murmúrio apenas, em meio à dor. Seus olhos tão meigos, mesmo na tragédia, encontraram os meus marejados de pranto, pranto por fim sincero, amoroso e sofrido... Mas... tarde, muito tarde...
- Janice, meu amor... Não se vá... Eu te amo, Janice...
-Eu sei, Roberto... Nunca duvidei do seu amor... Não fique triste, não vamos nos separar... Um dia nos reencontraremos... não importa como... Acredite...
Fechou os olhos para sempre. Também os meus nunca mais se abriram para o mundo à minha volta.
Parece ser um castigo que eu mesmo me imponho, relembrando todos os dias a minha irresponsabilidade, o álcool como companheiro, o alerta que ela fez, em nosso último diálogo:
- Roberto, não dirija... Você não está bem, vamos de táxi... Venha buscar o carro amanhã...
- Quem não está bem? Estou muito bem! Vamos, entre logo no carro, você vai ver como se dirige com classe!
Se eu pudesse voltar, desfazer o nó que eu mesmo dei na minha caminhada, ela certamente não seria tão cheia de obstáculos. Mas, voltar... Voltar como?...
De cabeça baixa, evitando as poças d’água que a chuva acabara de deixar nas calçadas, mais por distração do que para não molhar os sapatos, seguia com os meus pensamentos pela rua escura e quase sem iluminação. Três da manhã. Que ficara fazendo até aquela hora? Eu não sabia. Apenas vira a hora passar, no bar, em frente a uma chávena de chá, para espantar um pouco o frio e prolongar a hora do retorno solitário à casa.
E foi de cabeça baixa que vi, refletindo na rua molhada, uma luz que piscava, intermitente. Levantei os olhos. Era um letreiro luminoso, com certeza esquecido aceso por algum lojista, distraído como eu.
Quando li no luminoso, em círculo, envolvendo um relógio - RELOJOARIA - fiquei curioso. Relógios, de alguma forma, me atraiam. Talvez por sentir que o tempo, para mim, arrastava-se lentamente, para que eu mais me punisse, na minha culpa.
Eu nunca passava por ali tão tarde. Ainda não havia prestado atenção naquela loja. Sempre que voltava do trabalho era dia claro, e além disso, mudara-me para o bairro há pouco tempo. E a lojinha era pequena, de porta sempre fechada, espremida entre duas outras grandes e movimen-tadas. Tinha uma vitrine que destoava do seu tamanho, e com uma cortina sempre cerrada, que, embora bastante vaporosa, não deixava que se enxergasse nada em seu interior.
Causou-me estranheza o letreiro aceso, ainda mais quando toda a rua estava iluminada apenas pela luz de dois ou três postes. Atravessei a rua para ver de mais perto. Lá dentro, como sendo mais no fundo da loja, pude divisar através da rala cortina um mortiço foco de luz, que nada me deixava ver. Bati com o chaveiro na vitrine, enquanto tentava enxergar mais alguma coisa. Mas por que bater, àquela hora, meu Deus? Que iria pensar algum vigia, se houvesse, ou mesmo o dono, se morasse, talvez, nos fundos? Quando percebi o que havia feito, pensei em me afastar, depressa. Mas ninguém me respondeu, felizmente. Tomei o rumo de casa, prometendo-me pela manhã prestar mais atenção àquela lojinha.
Conferi, no dia seguinte, o que mal divisara na madru-gada anterior. Parei em frente à loja, e confirmei que, pela vitrine, nada realmente se poderia ver, e ainda mais dificultava a visão a claridade exterior. Em frente à porta, rodei a maçaneta - era uma porta de maçaneta, como naquelas lojas antigas, que só se vêem em filmes.
Estava aberta. Entrei. Não havia ninguém. Havia, sim, relógios espalhados pelas paredes e pelas prateleiras do pe-queno salão. De pêndulo, de parede, cucos, de mesa...  Dentro do balcão, com tampo de vidro, alguns poucos de pulso e muitos de algibeira. Todos muito antigos. A loja parecia envolta pelo tempo...
Mais tarde iria constatar como isto era verdade.
Vi uma campainha, sobre o vidro, e imaginei que fosse para chamar quem me atendesse. Bati duas vezes e aguardei, pensando no que iria dizer, pois, enfim, não entrei ali para comprar nada. Por trás do reposteiro que dividia o salão do que imaginei ser uma oficina, surgiu uma figura, no mínimo, curiosa. Um senhor idoso, baixinho, bem calvo, com uma camisa daquelas sem colarinho, fechada com um botão de ou-ro, e suspensórios segurando as calças. Vinha sorrindo, com um relógio de bolso nas mãos, como se o estivesse reparan-do.
- Bom dia... Em que posso servi-lo?
- Bom dia, meu senhor. Na verdade, entrei apenas para conhecer a sua loja. Eu sou novo aqui no bairro, e estou satisfeito em saber que temos um relojoeiro tão perto. Gosto mui-to de relógios, principalmente antigos, como quase todos aqui são...
- É... Quase todos, não... Todos... Gosta de relógios? Por que? Anda muito ocupado, tem pouco tempo... precisa deles?... É o que todo mundo diz... Mas quem gosta de relógios é sempre bem vindo, na minha loja. Não precisa comprar...
- Muito obrigado, pode estar certo de que virei mais ve-zes. Mas não, não ando muito ocupado... Na verdade divido bem o meu tempo e quase não preciso conferi-lo nos reló-gios. Mas gosto do engenho destas máquinas, de vê-las tra-balhar, de seu tic-tac... Para mim, esses modernos, digitais, embora sejam precisos e até bem baratos, perderam todo o encanto que tem o imponente pêndulo de um carrilhão, por exemplo. Olhe só o relógio que uso: - mostrei-lhe o pulso - está comigo há mais de cinquenta anos, e não o troco por nenhum outro...
O velho examinou o Patek - herança de meu avô – demoradamente, segurando o meu pulso. Depois olhou-me, sem largar o meu braço, e disse:
- Você vai gostar da minha loja mais do que imagina. Sempre que quiser, venha aqui. Não precisa comprar nada, uma boa conversa vale mais do que uma venda. Como é o seu nome?
- Roberto.
Enfatizou, quando disse: “não precisa comprar nada”. Não me parecia empenhado em vender.
- Muito prazer, Roberto. O meu é Jonas. - e repetiu - Você vai gostar muito da minha loja.
Estranhei a sua insistência. Por que eu iria gostar muito da loja, “mais do que podia imaginar”, se já a estava vendo toda, de tão pequena? O que ela teria além do que eu já havia visto?
Ele parece ter lido meus pensamentos.
- Você ainda não a conhece. Ela tem muito mais a lhe mostrar. Venha com mais calma, venha a qualquer hora...
- Muito obrigado, senhor Jonas. Pode estar certo que virei. A qualquer hora? - fiz uma pausa, lembrando-me da véspera - Sabe? Ontem à noite estive aqui. É bem verdade que já eram três da manhã. Não sei por que, cheguei a bater no vidro da vitrine. Ainda bem que não tinha ninguém, pois foi por um impulso sem motivo que bati. Talvez quisesse avisar que o letreiro fora esquecido aceso. Havia, também, luz...
- Não, não foi esquecido... Havia luz? Com certeza al-guém estava aqui... As pessoas entram e saem...- foi a vez dele calar-se por uns instantes, mantendo um simpático sorriso.
-  Olhe, eu não sou senhor Jonas. Prefiro ser o Mestre Jonas, como resolveram me chamar, embora nunca tenha sido mestre de ninguém... Maneira de dizer, apenas...
Estranhei o comentário, mas não era da minha conta quem estaria na loja, e nem por que o letreiro ficava aceso a noite toda. Se não era ele, por certo não seria um segurança. Seria muito moderna para o Mestre Jonas a presença de um segurança...
- Está bem, Mestre Jonas. Qualquer hora eu volto, para conversarmos.
- Venha mesmo... se gosta tanto de relógios...
Despedi-me, dando tratos à bola. Que diálogo mais estranho! “As pessoas entram e saem”...  às três da manhã? Não precisaria de outro convite para voltar a conversar com Mestre Jonas.
Embora morto de curiosidade, deixei passar uma sema-na antes de fazer nova visita à pequena loja. Não queria pa-recer muito “entrão” aos olhos do velho.
Entrei, já procurando a campainha sobre o balcão. Mas desta vez ele estava lá, sorrindo para mim, como se tivésse-mos marcado o segundo encontro.
- Veio com tempo, hoje? Quem entra aqui não pode ter pressa...
- Vim, sim. Hoje vim com tempo. Como está?
Em vez de retribuir o cumprimento, ele chamou-me, fazendo sinal com o indicador:
- Venha cá, entre. Venha conhecer as salinhas... - e afastou o reposteiro que vedava os fundos da loja.
Segui-o. Quando atravessei o umbral, deparei com um grande pátio ajardinado e ensolarado, limitado por um cor-redor em semicírculo. Nesse corredor, algumas portas fechadas, que imaginei devessem abrir para as salinhas que Mestre Jonas havia mencionado.
Mas... a lojinha ocupava não mais que três metros da calçada, espremida, como disse, entre duas outras lojas bem maiores. Não havia lugar para aquele jardim. Tentei situar-me, sem sucesso. Afinal, não era apenas o jardim, ali, que colidia com a realidade. O letreiro sempre aceso, pessoas que entravam e saiam a qualquer hora... O próprio Mestre Jonas era um tanto irreal. Senti que nada poderia ser claramente explicado, por isso entrei no clima non sense reinante.
- Que belo jardim! - foi o que me veio à fala, com falsa naturalidade.
- Lindo, não? Venha... vamos ver as salas...
O velho mestre tomou-me a frente, abrindo as portas em sequência e deixando-as escancaradas para que eu visse as salas. Eram todas pequenas, iguais, sem janelas, apenas com mais uma porta na parede oposta àquela que havia sido aberta. A primeira estava mobiliada ao gosto do início do século. Notei um enorme relógio de pêndulo, de chão, e um outro menor, na parede, ao lado deste, e a outra porta, aberta para mais um jardim. Um pomar, melhor dizendo. Fiz menção de entrar, mas ele puxou-me pelo braço.
- Não entre já. Venha ver as outras. Todas estas já foram usadas.
Eram todas tão irreais quanto a primeira. Mobiliários de diversos estilos e épocas, em cada uma delas. Os mesmos relógios, e as mesmas portas que se abriam para um insólito exterior. Que eram também diferentes, em cada sala. Um, es-tava sob belo dia de sol e jardins floridos; em outro, num pó-mar verdejante, nuvens negras prenunciavam fortes chuvas; em outro ainda, o ambiente era lúgubre e sombrio, como num cemitério... Curiosamente, uma das portas abria-se para uma rua, com casas, automóveis e pessoas nas calçadas. Mas... nada se movia. Eram como quadros em três dimensões.
- Você reparou nos carrilhões? Estes são especiais...
Só então percebi que os mostradores marcavam datas, e não horas. Ponteiros assinalavam dias, meses e anos, e os pêndulos estavam parados, no prumo. As horas, estas eram marcadas nos relógios menores. Todos eles estavam parados. Duas das salas estavam inteiramente vazias, e as portas para o exterior, fechadas. Apenas os dois relógios compunham o mobiliário.
- Aqui, meu caro Roberto, você comanda o tempo. - disse Mestre Jonas, agora sério e circunspecto. - Cada sala é um mundo diferente. Eles vêm aqui, quase sempre - ou sempre - resolvem seus problemas e se vão, deixando os seus ambientes... Depois eu os desfaço...
- Eles, quem, Mestre Jonas?
- Ora, os meus amigos. Todos aqueles que gostam de relógios... como você, agora... Podem vir a qualquer hora, são meus amigos. Amigos que vejo uma vez, e nunca mais vol-tam, pois a oportunidade é uma só... Agora que você conhece a minha loja, faça bom proveito dela. Como eu disse, não precisa comprar nada... Acho até que se alguém quisesse comprar um dos relógios, eu não saberia nem dar o preço...
Mestre Jonas riu, sacudindo a barriga, e ajuntou:
- Vai em paz, Roberto. Venha, quando precisar. Mesmo que eu não esteja aqui. Use uma das salinhas vazias, crie seu ambiente...
Enigmático, o velho. Para que eu usaria uma das salas? E vazia? Que amigos eram esses, que iam embora, nunca mais voltavam e “deixavam os ambientes que criaram”? 
Parecia ler meus pensamentos, o Mestre Jonas:
- Na hora você vai saber o que fazer... Quem sabe acabarão os seus problemas? Depende só de você.
Então ele sabia que eu tinha problemas. Senti vontade de nem sair dali e já entrar numa das salinhas vazias, para “usá-la”, como ele disse. Mas contive-me. Voltaria mais tarde, melhor à noite, já que poderia ir a qualquer hora. Não devia mostrar ansiedade, embora a curiosidade me esquentasse o sangue nas veias.
Pus-me a imaginar de que jeito poderia resolver minhas angústias entrando numa daquelas salas vazias. Mestre Jonas não me tinha confiado tudo o que poderia. Dependia de mim, ele foi claro apenas nesse ponto. Pois bem, eu descobriria.
Dias depois, voltei. Fazia frio, a rua estava deserta. De longe via-se o relógio luminoso. Marcava duas horas e quarenta minutos - da madrugada. Era melhor assim, para desvendar, na quietude, os mistérios da relojoaria. Acerquei-me da porta, rodei a maçaneta. Estava aberta. Depois do diálogo com Mestre Jonas, não estranhei que a porta talvez nunca fosse fechada.
Mais uma vez adentrei a loja, desta vez com dificuldade, pois encontrei-a às escuras. Tateando, cheguei ao reposteiro. Quando afastei a cortina, lá estava o pátio, sob o mesmo céu azul e ensolarado que eu vira dias antes. A claridade repentina e inesperada cegou-me por um instante, e senti um forte arrepio percorrer-me a espinha, eriçando-me o cabelo. Algu-mas portas abertas, no corredor, mostravam agora cenas di-ferentes das que eu tinha visto em companhia do relojoeiro. E eram três, agora, as portas fechadas.
Não relutei. Abri uma delas e entrei. Estava vazia, a outra porta também aberta para um pátio também vazio. O carrilhão e o outro relógio, parados, pareciam esperar que alguém os pusesse em funcionamento.
Sem saber como proceder, resolvi movimentar o pêndu-lo do relógio maior. Os três ponteiros marcavam a data do dia. Logo o tic-tac característico fez-se ouvir, mas nada aconteceu. Repeti o procedimento no mecanismo menor, que também marcavam a hora certa. Os diferentes tic-tacs com-fundiam-se, mas nada se alterou. Não sabia o que fazer, mas não pensei em desistir, lembrando-me das palavras do Mestre Jonas: “Na hora você vai saber...”
Estava à espera de alguma intuição esclarecedora, quando resolvi mexer, mais uma vez, nos ponteiros das horas, movendo-o para trás cerca de meia hora. No mesmo instante vi o ambiente, no exterior, formar-se em meio a uma névoa. Era noite, agora, e pela porta o cenário mostrava-me a rua, deserta e escura, e a lojinha, com seu letreiro luminoso marcando duas horas e dez.
Eu havia criado o ambiente onde eu estava, há meia hora atrás, ao movimentar os ponteiros. Seria isto, então, que o velho relojoeiro queria dizer? Havia o carrilhão, com inconcebíveis três ponteiros - dia, mês e ano - e outro, marcando horas - não apenas doze, mas as vinte e quatro do dia - e minutos. Então eu poderia escolher algum ponto do meu pas-sado e voltar a ele?
As trágicas lembranças de um passado que eu nunca conseguira esquecer voltaram-me de repente à tona. O rosto suave de Janice desenhava-se na minha frente. Sorria, sempre declarando-me o seu amor irrestrito, não importava o quanto eu a fizesse sofrer. O meu imaturo desprezo, por julgá-la sempre minha, que mantinha-a à distância, enquanto eu afirmava-me falsamente como seu dono e senhor, a minha infidelidade... nada fazia-me ver o quanto ela era sensível à minha indiferença. A sua trágica partida, a irresponsabilidade da minha culpa...
Meu Deus, se eu pudesse recomeçar...
Emocionado, voltei ao carrilhão. Sem pensar, movi os ponteiros, três vezes.
Mil novecentos e oitenta e dois... novembro... vinte e dois...
Nada aconteceu. Faltavam as horas. Não me lembrava com exatidão. Onze e meia da noite, talvez?
Então, tudo mudou. Eu estava agora ajoelhado no asfal-to, sob intensa chuva, a cabeça de Janice pendendo, inerte, de meus braços. Tomava parte, mais uma vez, da terrível tragédia que desabara sob mim, mas inteiramente consciente dos mais de vinte anos que a separavam da minha realidade.
Mais uma vez, tarde demais.
Podia sentir os batimentos do coração nas minhas têmporas. Consegui não me descontrolar, apesar de tudo. depositei o corpo de Janice com delicadeza, no asfalto, levantei-me, e olhei em volta. Estava sozinho, com ela.
Precisava voltar para a lojinha do Mestre Jonas. Mas onde estaria ela? Lembrei-me de ele ter-me dito que só haveria uma chance. Era tudo tão verdadeiro, mas ao mesmo tempo tão irreal, que não aceitei que houvesse apenas uma chance para mim. Fechei os olhos e chamei pelo velhinho relojoeiro.
- Mestre Jonas, por favor!... Não me condene a uma segunda vez, eu não aguentaria... Mestre Jonas... Faça-me voltar... faça-me voltar...
Mantive meus olhos cerrados por longo tempo. Tinha medo de abri-los e ver novamente Janice estendida no asfalto, sem vida, sorrindo para mim... Mas uma força maior do que a minha fez-me abri-los. E vi-me, novamente, na sala vazia, em frente aos dois relógios. Marcavam a data e a hora do meu presente.
Chorei copiosamente. Não sei como, eu havia feito jus a uma nova chance.
Emocionado, mais uma vez movimentei os ponteiros do carrilhão. Mil novecentos e oitenta e dois, novembro, dia vin-te e dois. Voltei-me para o relógio menor, mas registrei, desta vez : vinte horas.
Três horas antes do...
Vi-me novamente envolto em bruma. Quando ela dissi-pou-se, eu estava abraçado a Janice, em nossa casa, enquanto aguardávamos a hora de sairmos para a festa, que, agora, sabia que iria terminar em tragédia.
Eu a olhava com tanto amor, que ela estranhou a minha atitude, não escondendo a felicidade por ver-me tão carinhoso. Ainda assim, tentou nada dar a perceber.
- Vamos, então, Roberto? Que pena, estar chovendo tanto...
Abri a porta. Além do jardim, o carro, estacionado na porta, nos aguardava.
Não titubeei:
- Janice... Vamos ficar em casa, hoje... Quem sabe aqui nos divertiremos mais do que na festa?...
Ela aquiesceu, de pronto.
- Roberto, que ótima idéia. Esta noite chuvosa está pedindo cobertas quentes...
Entramos. Olhei mais uma vez para o carro, para a chuva que caia intermitente, e fechei a porta.
Eu estava começando uma nova vida.
Enquanto, abraçados, entrávamos em nosso quarto, per-guntei-me se algum dia eu iria conhecer o Mestre Jonas e sua fantástica relojoaria. Por certo que não... Só então entendi porque seus amigos nunca voltavam à loja...
E pensei que talvez ele estivesse, naquele momento,  desfazendo o ambiente que lá deixei.