segunda-feira, 21 de fevereiro de 2011

SEU ELIAS

Direitos autorais reservados


Um dia, eu estava, por acaso, nas proximidades da rua Oto, e resolvi dar uma chegada pelo querido local de minha infância. Alguém já disse: "Não volte a um lugar que lhe foi caro, pois certamente as suas boas lembranças hão de se apagar."
Nada mais certo. A cada passada eu constatava o dito popular. A minha antiga casa havia dado lugar a um prédio de apartamentos. As calçadas, estreitas, que a minha visão infantil teimava em me fazer lembrá-las alargadas, não comportariam mais as cabanas de galhos que fazíamos durante a poda anual as árvores, quando invariavelmente queimávamo-nos com a peçonha das lagartas, alvoroçadas com a destruição de seu habitat. O "outro lado" da rua, que sempre nos era apontado como território proibido, pois poderíamos ser atropelados por algum carro (que, aliás, passavam com intervalo de mais ou menos duas horas...), parecia-me agora muito mais perto. Enfim, tudo estava muito menor do que a minha percepção de criança deixara gravado em minha mente.
Uma ou outra casa ainda resistia, e eu as conhecia todas. Um tanto decepcionado, continuei meu passeio em direção à rua Morais e Silva, agora com tráfego intenso. Busquei o armarinho do seu Elias, ao dobrar a esquina. Não estava mais ali, embora o prédio ainda resistisse ao passar dos anos. Fora substituído por um botequim, bastante reles, por sinal. Veio-me à lembrança o tempo em que eu, com oito ou nove anos, ajudava o seu Elias a vender papel de embrulho para as moças da fábrica de biscoitos Aymoré, na hora do almoço. Era minha função cortar as folhas de papel cor de rosa e vender meia folha a cada uma delas, para que embrulhassem as marmitas vazias. Eu tinha até a minha caixinha de fazer troco... Em troca, sempre que ele abria uma caixa de sabonete Eucalol, para vender a varejo, eu ganhava as estampas. Eram três em cada caixa. Eu tinha a maior coleção do bairro e era invejado pelos outros garotos...
E o sabonete Dorly, que, como prêmio, inseria na massa moedas de dois mil réis? A tentação de furar com alfinete todos os sabonetes do estoque era grande. Um dia, o seu Elias deu-me um sabonete para que tentasse a sorte. Estava premiado! Saí com ele na mão por toda a vizinhança mostrando o meu achado, e por último voltei ao armarinho. Entrei na loja ofegante, e agradeci o presente premiado. Ele sorriu e disse-me "Mas que sorte a sua!..."

Eu já estava parado diante da loja do seu Elias há bastante tempo. Antes que os fregueses estranhassem a minha atitude, atravessei a rua e fiquei observando o boteco que insistia em desviar-me do meu sonho. A loja ao lado era ainda o mesmo armazém, embora um tanto melhorado, mas conservando ainda as características do típico comércio de bairro, que os supermercados encarregaram-se de destruir. Todo o resto do prédio estava até bem preservado, seus três andares de apartamentos não tinham sido alterados e o revestimento de pó de pedra era o mesmo. Somente o bar destoava do conjunto. Por que logo o armarinho do seu Elias tinha que sofrer metamorfose tão grande?
Foi então que ao meu lado parou um rapaz, que, embora muito mais novo do que eu, devia também ser chegado a uma nostalgia. Disse alguma coisa, que não ouvi bem. Mas a sua voz um tanto rouca chamou-me a atenção, por isso virei-me para vê-lo.
Era o seu Elias.
Mas era o seu Elias dos anos quarenta, de calças largas seguras por suspensórios, cabelos lisos um tanto ralos, penteados para trás, realçando a calva que se anunciava. Pensei: "A que ponto chegaram as minhas lembranças... Até o seu Elias achou de se mostrar nas minhas divagações..."
Examinei-o de alto a baixo. A mesma figura esguia e sóbria, o mesmo narigão adunco - marca da raça - o mesmo sorriso amarelado e sem jeito...
- Eu não sei o que houve... Fechei a loja, fui almoçar, agora volto e encontro esse botequim... Eu não sei o que houve...
Não falava exatamente comigo. Eu estava ali por acaso, não sei nem se ele me via ou não. Falava sozinho, coitado, e embora triste, não demonstrava nenhum espanto quanto ao seu armarinho ter se transformado em um bar durante o almoço.
- Eu não sei o que houve... - repetia monotonamente.
Percebi que outras pessoas iam e vinham, mas ninguém acusava sua presença. Pudera, se eu mesmo estava diante de uma figura mais velha, ou mais moça, sei lá, do que eu, e sem saber qual presença eu deveria acusar...
Com um certo receio de parecer meio maluco aos olhos dos outros, dirigi-me a ele:
- Como foi que isto aconteceu, seu Elias? De manhã estava tudo como antes?
Ele olhou para mim demoradamente, como se eu estivesse sendo o único a ouvir suas queixas. Não demonstrou nenhuma curiosidade em saber como eu sabia seu nome.
- Quem é o senhor?
Não respondi. Eu sim, é que estava perplexo por ele ter me ouvido. Também não esperou a minha resposta. Mas, desta vez, falou dirigindo-se a mim:
- Saí para o almoço, logo depois que as meninas da fábrica vieram aqui. Tenho tido muito trabalho, porque nessas horas aquele moleque me ajudava muito. Por isso, tratei de almoçar rápido. Quando voltei, vi este botequim...
O moleque era eu.
- Mas isso aconteceu hoje?
- Venho aqui todos os dias, meu senhor. É sempre a mesma coisa...
Apontava desconsolado para a loja. Entrei no seu esquema:
- Por que você não abre novamente o seu armarinho? Em vez de vir depois do almoço, traga a sua refeição e almoce na loja. Assim, você garante que ela não será transformada.
Ele ficou me olhando, pensativo, com o sorriso amarelo que eu já conhecia.
- Será que vai dar certo?
- Claro que vai! É só você ter muita vontade, ficar com o pensamento fixo no seu desejo. Você vai ver... Vai ter o seu armarinho de volta.
Os olhos dele brilharam, como se eu fosse o dono da verdade. Despedi-me, sem antes incentivá-lo ainda mais na empreitada sugerida, e segui meu caminho. Olhei para trás. Ele estava sentado no meio-fio, olhando para o outro lado da rua, sem entender a aparição do boteco. Com certeza, agora cheio de confiança em retomar a sua loja.
Passou-se o tempo. Voltei lá umas duas ou três vezes, mas não mais o vi. Obviamente, o bar estava no mesmo lugar.

Somente agora, que também voltei para este lado, lembrei-me de procurá-lo. Fui à rua Morais e Silva, quase certo de revê-lo, para contar-me a mesma história, desde o começo.
Não me enganei. Lá estava o seu Elias no seu armarinho, por trás do balcão, de braços cruzados aguardando os fregueses, exatamente como ficava há sessenta anos atrás. Entrei na loja e dirigi-me a ele.
- Seu Elias, como está? Hoje não vim comprar nada... Só conversar.
- Mas uma boa conversa é sempre bem vinda. Estou aguardando as moças chegarem...
- Vejo que conseguiu reabrir a loja. Meus parabéns!
- Mas... eu nunca a fechei...
De alguma forma ele conseguira apagar a antiga decepção. Contornei a situação:
- Bem, é que um dia eu passei aqui e não o vi. Deve ter sido num domingo... Mas, então? Como vão as coisas?
- O movimento caiu muito. Só quem vem aqui agora são as moças da fábrica...
- E no resto do dia?
- Ninguém entra na loja. As pessoas passam em frente, mas ninguém sequer olha para as vitrines. Só uma vez, que eu estava em pé na porta, quando aproximou-se uma senhora puxando um cachorrinho pela coleira. Quando me viu, o danado pôs-se a latir como se tivesse visto um fantasma... A dona ficou assustada e arrastou-o para longe. Mas ela mesmo, nem me viu...
Não estava em mim acordá-lo. Seria um assunto muito longo, e certamente ele não aceitaria os meus argumentos. Pois se o armarinho estava ali, seria porque ele havia conseguido "reabri-lo". Ou... nunca o teria fechado, segundo ele próprio.
Enquanto conversávamos, chegaram, em bando alegre, as moças da fábrica Aymoré. Ele já havia cortado as folhas de papel de embrulho e atrapalhava-se para atender diversas moças ao mesmo tempo, debaixo da algazarra natural que elas faziam. No meio da confusão, dirigiu-se a mim:
- Não tenho mais o Maurício para me ajudar. Prestava-me grande ajuda, o danadinho.
- Você nunca mais o viu?
- Nunca mais. Era um bom menino. Sabe? Apesar de ter apenas oito anos, ele nunca aceitou nem um trocado, por me auxiliar. Dizia que fazia só para me ajudar. Queria que o senhor visse a alegria dele quando eu lhe dava estampas Eucalol. Era muito mais do que dinheiro... E o sabonete Dorly, que andou dando prêmios, embutindo moedas no próprio sabonete? Um dia tirei um para meu uso e furei-o, para ver se trazia o brinde. Estava premiado. Disfarcei o furo, embalei-o novamente e dei de presente a ele. Mais tarde veio todo alegre mostrar-me a moeda de dois mil réis. Estava exultante...
Surpresa para mim. Só ali, naquele instante, tomei conhecimento da "armação" a meu favor...
Vendo o tumulto formado, ofereci-me para ajudar.
- Mas o senhor não entende nada...
- Entendo sim, seu Elias, mais do que você pensa...
Comecei a fazer as vendas com ligeireza, e num instante tudo acabou. Senti falta apenas da minha caixinha de troco. As moças foram saindo até que a última se foi. Pudemos conversar, então.
- Como é, seu Elias? Satisfeito em ter sua loja novamente?
Esqueci-me que ele havia dito que nunca a fechou. Respondeu-me com outra pergunta, aquela que ficou no ar, quando estávamos em planos diferentes.
Ele olhou-me, desconfiado com os acontecimentos, e perguntou-me, agora sério:
- Quem é você?
- Você não me conhece. De nada vai adiantar dizer quem eu sou.
Mais uma vez ele se satisfez com a minha resposta. Porém senti que havia algo de errado com ele. Não estava feliz na sua loja. Arrisquei:
- O que está lhe preocupando?
Ele baixou a cabeça e apoiou-se no balcão, com os braços abertos.
- O senhor notou? Estou mesmo preocupado. Não consigo dissimular. Acho até que espanto os fregueses. Ninguém mais vem aqui...
- O que é que o está entristecendo?
- Estou num dilema e ninguém pode me ajudar. Não sei se estou certo em permanecer aqui. Às vezes eu sinto que estou parado no mesmo lugar, e isso não é bom.
- Realmente ninguém pode criar raízes para sempre. Temos que melhorar, a cada nascer do sol...
- Eu sei. Por isso mesmo é que estou pensando em acabar com esse negócio. Mas ainda estou inseguro, sem saber se devo ou não fazer isso. Algo me diz que eu tenho que ir em frente, que um dia tudo isso terá que acabar...
- Acho uma boa idéia. - arrisquei. Eu sabia que a decisão era a melhor solução para ele, mas precisava chegar a ela por si mesmo.
Nesse momento chegaram as moças da fábrica, na alegre algazarra de sempre.
 - Estou cansado... Olhe para estas moças: esta cena se repete todos os dias, e mais de uma vez por dia. Não compreendo porque, se a hora do almoço é uma só... Elas vêm, conversando sempre o mesmo assunto, entram aqui na mesma ordem, e até os movimentos que fazem, as risadas, as brincadeiras, são os mesmos. Todos os dias, todas as horas!... A única diferença nesta cena, hoje, é que você está aqui, senão, quando a última moça fosse embora, eu voltaria ao meu silêncio, ao meu isolamento atrás desse balcão.
O pobre homem estava desolado, sem saber o que fazer. Mas estava no caminho certo.
Enquanto mais uma vez eu servia as moças, continuamos o diálogo. Ele estava, como sempre, atrapalhado com suas freguesas, mas isso não impediria a nossa conversa.
- Que falta me faz o Maurício...
Disse isso com tranquilidade, como se o Maurício fosse pessoa já conhecida por mim. Sem querer, acertou.
- Você nunca mais o viu?
- Nunca mais. Acho que a família mudou-se. Ele era muito esperto, dava conta do recado muito bem.
- É mesmo? Para a idade dele, só mexer com a caixinha de troco sem errar já era de se estranhar...
Seu Elias olhou-me, arregalando os olhos:
- Quem lhe falou da caixinha de troco?
Tinha que sair dessa honradamente, ainda que precisasse mentir um pouco.
- Você mesmo, seu Elias.
- Eu não! Em hora nenhuma comentei sobre essa caixinha.
Ele olhou-me muito sério. Estava já desconfiado de alguma coisa. Pela terceira vez fez-me a mesma pergunta:
- Quem é você?
Não tinha mais como omitir a minha identidade.
- Quando eu era criança, tinha a maior coleção de estampas Eucalol do bairro. Graças a você, seu Elias...
- Você... é o Maurício?
Sorri para ele, enquanto fazia um sinal afirmativo. Seria normal ele assustar-se com aquele velho na sua frente dizendo ser o Maurício. Mas não, para ele eu era o amigo e o ajudante de balcão que cuidava do bando de moças, todos os dias, não lhe importava a minha aparência...
Segurou-me pelos dois braços e deu-me uma sacudidela:
- Você sumiu, Maurício! O que houve? Esqueceu-se do companheiro?
- Cresci, seu Elias...
- Ora vejam só! O moleque cresceu mesmo! Vejo que eu também preciso modificar essa minha vida. A sua chegada por aqui foi muito boa, agora não tenho mais dúvidas. Vou acabar com este armarinho!
E, saindo de trás do balcão, pedindo licença entre as freguesas de todos os dias, bateu nas minhas costas:
- Vamos embora?
- Tem certeza de que é o que você quer?
- Claro, estou mais do que certo!
Seu Elias estava animado. Era a resolução certa que estava tomando, embora ainda não percebesse.
- Então vamos.
Pus a mão em seu ombro e deixamos a loja conversando. À medida em que caminhávamos, atrás de nós o armarinho, as moças da fábrica Aymoré, a rua Morais e Silva, todo aquele mundo que ele construiu começava a volatilizar-se, até desaparecer por completo...



 


   

sábado, 5 de fevereiro de 2011

A PRAIA


Direitos autorais reservado

s


Terça-feira. A praia estava vazia, apesar do dia quente e do sol brilhante. Uma praia de difícil acesso, dessas procuradas mais para piqueniques do que para o bronzeado de cada dia. Pequena, com sua faixa de areia delimitada por duas enormes pedras e com um bosque no fundo, não eram muitos os que sabiam de sua existência. Da estrada, que se situava muitos metros acima, não era vista. Nos fins de semana, alguns carros estacionados no acostamento sugeriam a sua existência. Mas era uma terça-feira, e apesar do azul do céu e da transparência das águas verdes, era dia de trabalho. Apenas o carro de Rubens e um outro - talvez de mais alguém de férias - estavam parados na estrada.
Ele acabara de descer a estreita trilha por dentro da mata e pisava a fina e branca areia da praia. Estava com um amigo - Miguel - a quem hospedava por alguns dias, e não queria que ele voltasse para a sua terra sem conhecer todas as belezas da sua cidade.
Mas por que o havia trazido ali? Era apenas mais uma prainha, linda, mas tão bonita quanto dezenas de outras que havia nas redondezas, embora esta, particularmente, lhe trouxesse muitas lembranças. Agradáveis? Nem sabia ao certo. Talvez por causa dessas indefinidas lembranças é que jamais houvesse voltado, preferindo tentar esquecê-las.
- Veja, Miguel, que beleza! Pouca gente conhece este recanto. Não é uma maravilha?
- É mesmo. Esta mata aqui atrás, esta trilha de acesso... Dão-nos a impressão de sermos pioneiros...
- Eu só estive aqui uma vez. - Rubens falou, reticente.
- Uma vez? E morando toda a sua vida nesta cidade? Rubens, esta praia não é tão longe assim. Se eu tivesse um paraíso destes perto de casa, seria o meu local favorito para descanso e meditação!
- Pois é. Mas não tive motivos para voltar. Sabe quando estive aqui? Há trinta anos...
- Trinta anos! E nunca mais voltou? Menos ainda entendo. Por que você se lembrou de trazer-me, então?
- Não sei... Mas valeu a pena, não é mesmo? Veja só, nada mudou. Parece-me que foi ontem... Apenas aquela amendoeira não existia, na época. Era difícil conseguir-se uma pequena sombra, nas beiradas da mata.
Havia uma jovem senhora já sentada sob a generosa árvore, o que provocou um comentário de Miguel:
- É melhor armarmos a barraca, pois a sombra continua difícil...
Instalaram-se, comodamente. Rubens ofereceu uma lata de cerveja ao amigo. Catou-a entre as pedras de gelo, no isopor, e estendeu-a a Miguel, que a abriu com o estalido característico.
- Esse estalo aumenta ainda mais a sede - brincou. Após sorver o primeiro gole, provocou a continuação do assunto interrompido.
- Por que você disse que não teve motivos para voltar?
- Talvez porque teria sido simples saudosismo. Eu vou lhe dizer uma coisa: muitas vezes recebi como que um chamamento para vir aqui, uma sensação difícil de explicar, sabe? Mas sempre relutei em atender a mim mesmo...
- Mas, como? Que chamamento é esse?
- Maneira de dizer, apenas... É que às vezes acordo pensando nesta praia, nas coisas que aconteceram por aqui e me vem uma vontade muito forte de rever este local. Mas para quê? Nada mais vai acontecer...
- Mas você está muito reticente... O que houve, afinal?
- No dia em que vim aqui, Miguel, acho que deixei escapar uma bela oportunidade de ser feliz...
- Ora essa... e você não é feliz?
- Sim, sou... Mas eu me refiro a um outro tipo de felicidade. Sabe, eu tenho tudo o que quero, exceto... uma família... Não é fácil chegar à minha idade sozinho, sem ter com quem repartir os dias e as noites...
- E que oportunidade teria sido essa, que foi perdida em uma praia tão deserta? Se hoje ela está assim, imagine há trinta anos atrás...
- Pois é para você ver. As oportunidades estão onde menos se espera, ainda que às vezes, ou quase sempre, as deixemos escapar. Mas naquele dia a praia não estava assim tão deserta. Havia um grupo bem grande, num animado piquenique. Eu, sim, é que estava sozinho comigo mesmo...
- Como você veio parar aqui?
- Era difícil... Naquela época, só se vinha aqui de ônibus, mas eram apenas quatro ou cinco horários por dia. Se se perdesse o último, que voltava para a cidade ainda cedo, tinha-se que dormir na praia. Mas eu tinha espírito esportivo, gostava de conhecer tudo e todos...
- E o que aconteceu?
- Quase uma tragédia, Miguel. Mas felizmente tudo acabou bem.
- Uma tragédia?
- Sim. Vê essas águas, tão calmas? Pois naquele dia o mar estava violento e perigoso, de grandes ondas batidas que arrastam tudo em seu retorno. Não como hoje, essa lagoa morna e deliciosa.
- Custo a acreditar que essas águas possam ficar perigosas.
- Pois é, mas estavam, e muito. Tanto que todos daquele grupo - vim a saber depois que formavam uma família - não passavam da beira da água e mal molhavam os joelhos.
- Não é para menos.
- Mas entre eles havia uma jovem, de mais ou menos dezesseis anos, que logo me chamou a atenção. E da maneira como ela, de longe, me olhava, logo vi que também ficou impressionada comigo. Pudera, eu tinha vinte anos, era bonitão... Mas ficamos apenas nos olhares.
- Imagine, você se aproximar de uma menina, naquela época, em frente de toda a sua família...
- Nem pensar. Por isso mesmo contentamo-nos com o “flirt” silencioso, com chamávamos na época... Dentro da água, ela era a mais afoita. A toda hora ensaiava enfrentar as ondas revoltas, com a pouca responsabilidade que sua juventude lhe conferia. Aquilo provocava constantes repreensões de seus familiares, e muita apreensão em mim, também. Ela nadava bem, mas eu conheço as águas traiçoeiras de todo esse litoral. E o pior não tardou a acontecer. Numa daquelas investidas mar a dentro, a moça foi subitamente tragada pela correnteza, e por mais que tentasse não conseguia voltar. Assustados, seus familiares correram até onde eu estava, pedindo socorro. Não havia mais ninguém a quem recorrer e nenhum deles nadava tão bem a ponto de enfrentar aquelas águas. Não hesitei - e antes mesmo que eles se aproximassem eu já corria para a água e me atirava ao mar. Com muito custo acerquei-me dela, que lutava bravamente. Consegui segurá-la pelos cabelos. Tinha-os longos e soltos. Mas uma vaga maior arrebatou-a de mim. E eu a vi, debatendo-se no meio da espuma, desaparecer da minha vista. Procurei-a por todos os lados, na angústia de quem a tinha tido nas mãos e a havia perdido. Ainda lutei contra as águas por muito tempo, mas em vão. Depois, exausto, retornei à praia.
- E por que você disse que foi quase uma tragédia ? A moça foi salva ?
- Deixe-me continuar. Lembro-me que o desespero tomou conta de todos, quando me viram voltar sozinho. Não sabiam o que fazer, impotentes diante daquela imensidão de águas revoltas. Juntei-me a eles, na procura que já julgávamos inútil. Disseram-me, entre lágrimas, serem do interior e que estavam a passeio, jamais imaginando que tamanha tragédia pudesse vir a acontecer. Inutilmente buscava palavras de consolo, porque também eu estava precisando delas.
- E então?
- Nenhum de nós, agora irmanados pela tragédia, conseguia admitir aquela fatalidade. Sobretudo eu, que havia tido a moça em minhas mãos. Foram longos e horríveis momentos de uma espera angustiante que nos parecia inútil.
Rubens fez uma pausa, e continuou:
- De repente, divisei ao longe, muito além da arrebentação, um pequeno ponto negro sobre as águas. Era a jovem, que flutuava de braços abertos, com certeza consciente de que precisava descansar onde o mar estava mais calmo, antes de voltar à luta. Não se movia, mas eu sabia que ela estava bem. Novamente atirei-me às águas, e com muito esforço desta vez consegui trazê-la, semi-desfalecida, para a areia da praia. Aos poucos foi-se reanimando, até que abriu os olhos.
Novamente Rubens calou-se por instantes. Olhou para Miguel, que acompanhava o relato com interesse. Sorveu um gole de cerveja e sorriu, tentando dissimular a emoção.
- Dois grandes olhos negros, que eu via agora bem de perto... Imagine... Eu estava ajoelhado e sua cabeça descansava em meus braços. Seus familiares rodeavam-nos, ainda apreensivos, em silêncio. Sua mãe olhava-me como se eu fosse um herói a devolver-lhe a vida da filha. “Você a salvou”- disse - “Isso não tem preço...”. E me abraçou.
- Rubens, você foi um herói. Isso deve ter marcado você profundamente.
- E como...Mas marcou-me muito mais o que aconteceu depois.
- O que foi?
- Assim que a menina abriu os olhos, Miguel, encontrou os meus. Por alguns segundos nada disse. Senti que me olhava com tanta ternura que tive receio que os outros percebessem alguma coisa.
Todos, em volta, falavam ao mesmo tempo, sua mãe acariciando-lhe os cabelos, mas tanto eu como ela estávamos alheios àquela algazarra, agora festiva. Nada ouvíamos. Ela, então, perguntou-me: “Que dia é hoje?” Estranhei a pergunta, mas disse-lhe o dia - um domingo - e ela sorriu para mim, sem tirar os olhos dos meus. Quando respondi, pareceu-me aliviada, não sei bem de quê. Mas era natural. Enfim, estava salva. Mas fiquei com a impressão que não era só por isso. Havia mais alguma coisa, que eu nunca soube o que seria. Em seguida, perguntou o meu nome. “Rubens”- falei. Ela fez uma pausa, como se precisasse de um pouco de tempo para compreender o que estava se passando. Depois, disse: “Eu voltei... Eu sabia que você me salvaria... Rubens...”. Nunca mais esqueci suas palavras, até hoje sem explicação para mim.
- Mas que história...
- Pois é. Então, em seguida lentamente ela se levantou, e eu fiz o mesmo. Ficamos de frente um para o outro. Foi minha vez de perguntar: “E o seu nome, qual é?” “Raquel”- disse ela. Pouco depois afastou-se com o grupo, que não se cansava de agradecer a minha oportuna intervenção. Fiquei ali, na beira da água, vendo-a distanciar-se. Estranho, não?
- E nunca mais a viu?
- Nunca mais.
- Mas você nem tentou...
- Tentar o quê, Miguel? A coisa acabou ali, ela era do interior, não sei nem de onde... Tentar o quê?
- Você a reconheceria?
- Quem sabe? O tempo passou, mas aqueles grandes olhos negros ainda devem ter o mesmo brilho. Olhos não mudam... Ela era uma linda menina...
- ...que poderia ter mudado a sua vida...
- Pois é. Mas não se vive de sonhos.
- Onde estará essa moça, agora? Se isso se deu há trin-ta anos, deve estar com uns... quarenta e seis...
- Casada, cuidando do marido e dos filhos em uma cidade qualquer do interior. Com certeza já esquecida do anjo bom que a salvou.
As lembranças de Rubens haviam tocado Miguel. Ele também era do interior, tinha mulher e filhos e era feliz. Pó-dia imaginar como o amigo se sentia. Nunca se casara, não conhecia o prazer de uma vida em família. Por certo não teria sido apenas pelas lembranças de Raquel que ele ficara solteiro, pois esta ele mal conhecera. Mas quem sabe, como ele mesmo disse, se os tempos fossem outros...
Haviam-se calado, os dois. Cada um ruminava seus próprios pensamentos, respeitado pelo outro.
De repente viram alguém que se aproximava, pelo mar, em vigorosas braçadas. Era um exímio nadador.
- Veja, Miguel, olhe aquele louco. De onde poderá ter vindo, de tão longe?
- É um bom nadador, sem dúvida. Olhe como se apro-xima rapidamente.
- Só mesmo com o mar calmo como está hoje é que isso está sendo possível. Se as águas estivessem como naque-le dia...
- É verdade. Mas olhe, é uma mulher, a corajosa. E co-mo nada bem, a moça! Mais algumas braçadas e poderá tocar na areia da praia.
Mal Miguel acabara de falar a moça se pôs de pé, com a água batendo-lhe nos joelhos. Vestia um maiô preto, de uma só peça, bastante recatado. Vinha saindo de dentro d’água bem em frente onde estavam os dois amigos. De repente parou, ainda dentro dágua e correu os olhos lentamente por toda a praia. Olhou para um lado, para o outro, e voltou-se novamente para o mar, como se procurasse alguém. Parecia desnorteada. Avistou a barraca dos dois amigos e sem hesitação dirigiu-se a ela.
Podiam vê-la bem, agora.
- É uma menina ainda, Rubens. O que faz essa moça, sozinha, nadando vinda não sei de onde para esta praia?
Rubens não tirava os olhos da moça. Ela já se aproximara bastante. Aqueles olhos, aqueles cabelos longos... Rubens segurou fortemente o braço do amigo, apertando-o nervosamente.
- Miguel... Miguel...
Miguel estranhou a atitude de Rubens, que continuava olhando para a moça.
- O que foi, Rubens?
- Ela... ela...
Rubens não conseguiu dizer mais nada. A menina estava já em frente a eles, e tinha uma estranha expressão de in-compreensão e espanto. Foi ela quem se dirigiu a eles:
- Por favor, os senhores já estão aqui há muito tempo?
A mesma voz... Rubens parecia uma estátua, rígido como pedra. Foi Miguel quem respondeu a pergunta.
- Sim, talvez há pouco mais de uma hora. Por quê?
- Não viram um grupo aqui na praia? Minha família... Meu Deus, eles não iriam embora... Mas não há ninguém aqui...
A jovem estava assustada. Parecia não compreender a situação que se lhe apresentava. Olhava para todos os lados, visivelmente aflita.
- Você veio com sua família? - perguntou Miguel.
Ela não respondeu.
- Essa praia é tão pequena...Vocês não viram mais ninguém por aqui?
- Não, minha filha. No meio da semana isso aqui é um deserto. E você, veio de onde?
- Meio da semana? Mas hoje não é domingo?
- Hoje é terça-feira...
A moça abriu ainda mais seus grandes olhos negros. Rubens continuava paralisado.
- Dois dias... Dois dias? - levou as duas mãos ao rosto - meu Deus, onde estive? Mas eles não iriam embora! Dois dias...
Miguel sentiu que ela fraquejava. Levantou-se, amparando-a. Evitou, mesmo, que seus joelhos dobrassem.
- Vamos, sente-se aqui. Conte-nos o que houve.
Ela sentou-se ao lado de Rubens, que permanecia em estado de choque. Miguel ajoelhou-se à sua frente.
- Ah, meu senhor, eu estou tão confusa! Eu não sei de mais nada...
- Mas procure lembrar-se. Nós vamos ajudá-la.
- Nós viemos passar o dia na praia...
Fez uma pausa. Olhava alternadamente para ambos, como quem pedia socorro.
- Mas isso foi domingo... E hoje é terça?
O pranto reprimido, nervoso, veio à tona. Não conseguia falar. Suas palavras eram abafadas pelo choro convulso.
Fosse pela surpresa do repentino aparecimento da moça, fosse pela curiosidade crescente que ela lhe despertava, o fato é que Miguel não ligou a cena à história que Rubens lhe havia contado.
Lentamente, Rubens voltou-se para ela e acariciou-lhe os cabelos. Sua voz, entretanto, continuava travada na garganta. A moça continuou:
- Nada faz sentido... O mar estava tão revolto... Fui tragada pelas ondas e me vi sozinha, lutando contra as águas que me arrastavam para o fundo... Não sei o que houve, então... não me lembro... Sei apenas que me vi nadando de volta, sem dificuldades. O mar agora está tão calmo... Mas, meu Deus, dois dias! O que aconteceu comigo nesses dois dias? Onde está a minha família?
Agora, também Miguel começava a ficar desconcertado. Nem ele podia imaginar o que estava acontecendo e prometia, sem saber como cumprir a promessa, ajudar a moça.
Angustiada, ela suplicava-lhe com o olhar.
- Por favor, meu senhor...
Ele não sabia o que dizer. Estava atônito. Pensou que talvez fosse um caso de atordoamento passageiro, pela demorada exposição à água e ao sol. Mas de onde ela vinha, que nem mesmo sabia dizer?
Então, foi Rubens que se voltou para ela, sentada ao seu lado, e perguntou-lhe num fio de voz:
- Raquel... ?
Assustada, a moça levantou-se de um salto.
- Como sabe o meu nome?... Quem são vocês?...
Rubens abaixou a cabeça e escondeu-a entre as mãos. Era ele, agora, que não conseguia conter o pranto.
- É você, Raquel?...- falou, a custo - Sente-se aqui, minha filha... Sente-se... Oh, meu Deus, por isso você voltou... para ser salva...
Para Miguel aquele diálogo era inteiramente sem nexo. Recusava-se, inconscientemente, a unir as duas histórias.
Rubens dirigia-se apenas à menina.
- Não foram dois dias, Raquel... Foram... Raquel, você veio para me encontrar... Como, eu não sei... mas você está aqui, ao meu lado...
- Senhor...- a voz de Raquel era calma, agora, mas ainda hesitante - tentaram me salvar, mas em vão...Eu não o compreendo... Eu... estarei morta? E vocês dois? Por que essa praia tão deserta, esse mar de repente tão calmo? Eu devo estar...
- Não, Raquel, não, você está viva, você vai viver, eu sei... Eu quase nada tenho para lhe dizer... mas agora sei... você terá que voltar à sua praia, àquele mar revolto e violento... mas será salva...Você não vai morrer...
- Ah, meu senhor, eu não sei o que fazer! Nós viemos passar o dia na praia... Mas era um domingo... e hoje é terça...
Raquel repetia maquinalmente as mesmas frases.
- Por favor senhor, se o senhor sabe de algo, não me esconda nada... Eu vou enlouquecer...
- Não, não vai não! Vamos, vamos voltar para o mar. Confie em mim. Vá e nade, nade bastante, depois flutue... descanse... e aguarde...
- Aguardar o quê? O que acontecerá comigo?
Apesar de tudo por que passava, Raquel sentia uma inexplicável segurança nas palavras de Rubens. Parecia-lhe conhecer o futuro, no seu passado.
- Raquel - disse ele - quando você estiver na praia de volta, irá perguntar ao rapaz que a terá salvo, o seu nome. “Rubens”, ele lhe dirá.
- Mas eu já estou salva... - ela ainda titubeou, tentando agarrar-se ao mais plausível. Rubens continuou reticente. Era preciso ser enigmático, pois como explicaria a ela? E o quê explicaria?
- Você deu um salto muito grande, Raquel. Volte para o mar, volte para o seu tempo...
Raquel acalmara-se. Nem sabia ao certo por que mo-tivo aquele senhor tão amável devia ter razão. Tudo na praia lhe era estranho, até mesmo o ar que respirava.
Não estava morta. Não estava viva, tampouco. Mas sentia segurança nas palavras do desconhecido que lhe afirmava precisar voltar ao mar...
Levantou-se. Rubens imitou o seu gesto. Olhou aquela menina-moça de olhos negros e cabelos longos, segurou-lhe as duas mãos e apertou-as suavemente.
- Como é o seu nome? - ela perguntou.
- Rubens...
- Rubens... O nome que ouvirei...
Ele sorriu e nada disse.
Miguel assistiu a tudo estarrecido. Estariam loucos, os dois? Rubens não poderia levar avante idéia tão esdrúxula, seria suicídio. Estava resolvido a impedir tamanha insensatez, embora seu raciocínio estivesse um tanto embotado por tantas coincidências que via se sucederem. Esforçava-se para crer que eram apenas coincidências.
Rubens começou a dirigir-se para a água, de mãos dadas com Raquel, ambos inteiramente alheios ao amigo, que vacilava ainda entre permitir ou não que se consumasse o estranho pacto. Por fim, Miguel resolveu que não poderia deixar ir avante a incompreensível decisão de Rubens, tranquilamente adotada pela moça.
- Esperem! - disse, começando a encaminhar-se em direção a eles - vocês não podem...
Deixou a frase no meio. Sentiu uma mão pousar suavemente em seu ombro, ao mesmo tempo que alguém lhe dizia, em voz baixa:
- Por favor, deixe-a ir...
Voltou-se, a ver quem era que o impedia no seu in-tento.
Era a jovem senhora que haviam visto descansando sob a amendoeira, ao chegarem. Ela voltou a falar-lhe:
- Não tente impedi-lo de salvá-la...
Miguel percebeu que seus dois grandes olhos negros estavam fixos em Rubens, que continuava em pé, na beira da água.
- Quem é a senhora?
- Eu sou Raquel... - fez uma pausa - Há quanto tempo espero por este momento...
Ela abraçou Miguel e levou-o ao encontro de Rubens. Ele estava de costas, com os braços cruzados e os olhos perdidos na vastidão do mar, à sua frente.

quinta-feira, 3 de fevereiro de 2011

GABRIEL D'AQUINO

Direitos autorais reservados


 “Petrúcio deu a última tragada. Nunca fumava mais do que um terço do cigarro. Então, num gesto tipicamente seu, segurou-o pelo filtro com o polegar e o dedo mínimo, enquanto esmagava a brasa entre o indicador e o médio. De longe, jogou a ponta do cigarro na cesta de papéis, com precisão. Havia achado a solução para mais um intrincado mistério.”

Gabriel fechou o livro e deixou-se ficar na poltrona, olhando para a televisão desligada à sua frente. Que homem, esse detetive Petrúcio! Perspicaz, astuto, corajoso, era a imagem que sonhava para si mesmo. Mas não era só o detetive Petrúcio que o fascinava assim. Na verdade, a cada livro que lia - e era um devorador de livros - vestia-se na pele do herói. Ângelo Petrúcio não seria uma exceção.
Sem se dar conta, começou a imitar o gesto característico do personagem. Segurou o cigarro da mesma maneira que o policial e correu os dois dedos pelo cilindro de papel, esmagando lentamente o seu recheio até sentir o calor da brasa entre eles. Mas a dor o fez acordar de seu sonho. Decididamente, ele não era Ângelo Petrúcio, o gênio das causas insolúveis.
De um salto, correu para o lavatório e procurou atenuar a dor da queimadura com o frescor da água fria, enquanto se perguntava por que havia feito aquilo. A leitura o absorvera de tal modo que lhe parecia ter-se transportado para dentro do livro. Sentia-se ainda Ângelo Petrúcio, apesar das bolhas que começavam a se formar entre os dedos queimados.

A vida de Gabriel era insossa. Morava sozinho no pequeno apartamento, e os vizinhos nada sabiam de sua família ou de seus amigos. Ou mesmo se os tinha. Saía pela manhã para o trabalho e quando voltava, à tardinha, vinha quase sempre sobraçando alguns livros. Mal cumprimentava os vizinhos. Talvez eles nem dessem por sua falta, se algum dia desaparecesse. Era um tipo comum, quase sem identidade, e sofria por isso. A cada livro que lia transformava-se no personagem principal com tanta intensidade, que não raramente, ao final de cada história tinha dificuldades em retornar à sua insípida personalidade de escriturário. Já fora, sucessivamente, um renomado e aristocrático cirurgião, um guerreiro das Filipinas, um samurai japonês...
Agora, apagava a brasa do cigarro com os dedos, como fazia Ângelo Petrúcio.
A leitura fácil e a narrativa cativante haviam-no prendido à poltrona da primeira à última linha. Já era madrugada e ali estava ele com os dedos debaixo da torneira e o livro na outra mão: “O caso da identidade trocada”. Debaixo do título o número dois, em algarismos romanos.
Então era uma série... Ele não havia percebido. Fechou a torneira e retornou à sua poltrona. A ardência continuava, mas Gabriel já não se importava tanto. O que importava é que havia um primeiro livro, por certo a primeira aventura do infalível homem da lei. Agora mal podia esperar amanhecer o dia, para correr à livraria mais próxima.
No dia seguinte, com efeito, retornou do trabalho já com o livro nas mãos. Não preparou o seu lanche vespertino, tampouco tomou o indispensável banho. Sequer trocou de roupa. Procurou logo a sua poltrona e lançou-se com avidez à leitura.
Havia trazido o primeiro livro da série e por isso mesmo, logo nas primeiras páginas o autor esmerava-se em uma descrição minuciosa de seu personagem. O detetive Petrúcio era celibatário e morava sozinho em um pequeno apartamento entulhado de móveis, tapetes e cortinas pesadas, sempre fechadas. E livros, muitos livros. A pequena cozinha, desarrumada, atestava a sua solidão. Vivia para os seus livros, seus crimes quase insolúveis e sua poltrona predileta em frente ao aparelho de televisão, que já não funcionava há mais de dois anos. Mesmo assim, era fitando a pequena tela sem vida que lhe vinha a inspiração para solver os seus mistérios.
Gabriel levantou os olhos do livro e olhou para a televisão. Não, não estava quebrada. Mas ele nunca a ligava, preferindo os seus livros aos insossos programas rotineiros.
- Parece o meu apartamento... - Deixou escapar em voz alta, percorrendo o ambiente com o olhar. As mesmas cortinas espessas, os tapetes e os móveis empoeirados... Chegou a desejar que a televisão não estivesse funcionando, em absurdo raciocínio.
Sorriu, meneando a cabeça. Que idéia mais idiota... Suspirou fundo e retornou à leitura. O autor continuava a descrição do personagem, porém já não mais abordando os seus hábitos. Descrevia-o agora fisicamente : “...estatura mediana, olhar penetrante, nariz adunco e lábios finos, encimados por espesso bigode. O maxilar inferior saliente dava-lhe um ar rude à fisionomia, acentuado ainda mais pelos contornos da boca, voltados para baixo”.
Decididamente, este não sou eu - tornou a pensar alto - mas bem que gostaria... um bigode, pelo menos...
Entortou os cantos da boca para baixo, franzindo o cenho.
Mas a leitura o fascinava e o personagem o inebriava. Chegava a adivinhar as atitudes que ele tomaria e até mesmo suas deduções, no decorrer da trama. Usava o seu próprio raciocínio e a sua inteligência, antecedendo-se à leitura, prevendo o seu desfecho, como se fora ele próprio o autor da história. Ou o personagem.
Enfim, mais um caso resolvido: “Ângelo Petrúcio amarrou o cinto de sua capa de gabardine, levou o chapéu à cabeça e deixou o sargento cuidando dos detalhes finais. Precisava espairecer um pouco. Tomou o caminho da avenida arborizada que margeava o rio, andou durante algum tempo acompanhando com os olhos a correnteza e parou. Apoiou-se na balaustrada de pedra, segurou o cigarro com o polegar e o mínimo e separou a brasa rubra, esmagando-a entre os dedos, lançando-o depois à correnteza. Missão cumprida.”
Quando Gabriel fechou o livro, segurava ainda na mão o cigarro. Como Petrúcio. A brasa, feita em cinza, estava caída ao seu lado. Como Petrúcio. E não havia queimadura nos seus dedos. Como Petrúcio.
Examinou as mãos, como se não fossem as suas. Pois se ele as havia queimado, na noite anterior... Havia repetido o gesto de Petrúcio, mas desta vez não havia queimaduras. Não lhe pareciam suas aquelas mãos, aquelas unhas, aquele anel no dedo mínimo, ainda mais porque parcamente iluminadas pelo abajur da mesinha, única luz acesa no apartamento. Levantou-se, na penumbra, esforçando-se para sentir alguma dor entre os dedos. Foi ao lavatório, e em ato instintivo deixou jorrar água onde deveria haver uma queimadura. Mas não havia.
Levantou os olhos e mirou-se no grande espelho que encimava a banca de granito. Mas o rosto que o cristal lhe mostrou foi o de um homem de olhar penetrante, nariz adunco e queixo proeminente...

Cofiou o farto bigode com a mão ainda molhada. Chegou bem perto da sua imagem. Olhos nos olhos. Sorriu. E disse baixinho :
- Você está aí, detetive Petrúcio... Eu sei...
Acordou com as primeiras luzes da manhã. Ali mesmo, na poltrona. De olhos ainda semi-cerrados, mas lúcido, imaginava o que o esperava. Mais um dia comum, atrás de uma escrivaninha, garantindo o seu sustento. Depois, no fim da tarde, estaria naquela poltrona novamente, por certo iniciando a leitura de um novo livro, talvez - quem sabe? - o terceiro volume das aventuras de Ângelo Petrúcio.
Levantou-se, fez o café, torrou o pão dormido. Não havia pressa. Calmamente fez a primeira refeição do dia e vestiu-se. Enquanto se preparava, mais uma vez apanhou-se examinando os dedos. Inconscientemente evitava o espelho, sem saber bem com medo de quê. Talvez, quem sabe, por já estar cansado do seu rosto inexpressivo.
Ao fechar a porta do apartamento, cumprimentou o vizinho, que chegava com o leite e o pão. Seu cumprimento foi retribuído apenas com um olhar espantado e de incompreensão. Não se importou. Afinal, sempre fora anti-social e tampouco se interessava em melhorar a sua imagem. Mas o vizinho, este sim, estranhou-o. E muito.
Quem seria aquele desconhecido, saindo em silêncio do apartamento do sr. Gabriel, na penumbra da manhã ? Pois se era um homem sem amigos, o sr. Gabriel...
Gabriel ganhou a rua, mas andava a esmo. Os acontecimentos da véspera ainda não tinham sido bem digeridos. Era sua vontade não ir ao escritório e sim percorrer as livrarias atrás do terceiro volume (deveria existir...) das aventuras do seu ídolo do momento. Mas resolveu caminhar pela avenida arborizada, à margem do rio. Era um lugar calmo e propício às suas divagações. Resolveu parar. Apoiou-se no largo parapeito de pedra e deixou-se ficar ali olhando para as águas, não sabia se por minutos ou horas, enquanto seu pensamento parecia estar também sendo arrastado pela correnteza. Lenta, sim, mas transformando inexoravelmente em ontem o seu amanhã.
“- Nada do que foi será...”
Lembrou-se vagamente da letra da música. Levou a mão aos bigodes - bastos bigodes - e não estranhou, embora sabendo-os inexistentes. Sua mente também lhe parecia um rio, mas não como aquele à sua frente. Um rio caudaloso, onde sucediam-se vertiginosamente os seus pensa-mentos. Quem era Gabriel D’Aquino, acostumado a refugiar-se nos livros e na solidão, à cata talvez de uma identidade que não possuía ? Quem era esse homem sem amigos, sem parentes, sem tradição, que descia a correnteza da vida junto com as águas e ao sabor dela ? E agora, que fazia ali Ângelo Petrúcio, intrometendo-se em sua vida, impedindo-o de queimar seus dedos com brinca-deiras fúteis ?
Desta vez, jogou o cigarro no chão e amassou-o com a ponta do sapato. Não lhe interessavam mais as sutilezas infantis do detetive. Não queria ser mais ninguém além dele mesmo.
Mas Gabriel já não sabia quem era ele. Gabriel? Agora havia o anel, o bigode, o olhar penetrante...
Talvez fosse tarde demais...
Deu meia volta e deixou a beira-rio. Caminhava devagar, cabeça baixa e sem rumo, colocando maquinalmente um pé ante outro, vendo-os se sucederem como se não fossem os seus. Sentia travar-se angustiante e surda batalha entre Gabriel D’Aquino e Ângelo Petrúcio, dois personagens irreais, inexistentes, insistindo em mixarem-se, revolvendo-lhe as entranhas, queimando-lhe os dedos, brincando com aquele corpo que já havia pertencido a um samurai, a um guerreiro e a tantos outros personagens. As pessoas que passavam por ele pareciam estar em outro mundo, caminhando entre os capítulos de um livro, um volumoso livro que o engolia mais e mais a cada página virada.
Agora eram centenas de livros que o rodeavam e ele inebriava-se com aquela visão. Folheava-os sofregamente, atirando-os incontinenti para os lados e para a frente. Já os conhecia a todos, não havia novidades. Lançava-se a uma procura febril, à caça não sabia de quê, até que por fim um volume chamou-lhe a atenção: era a terceira aventura de Ângelo Petrúcio. De um salto, tomou-o com as duas mãos. Apertava-o nervosamente, quase danificando-o.
Aquele título... por que aquele título?...
- Pois não, senhor. Quer que mande embrulhá-lo?
As palavras do livreiro soaram como se uma bala de canhão atravessasse a sua cabeça. Não respondeu. Sua garganta fechava-se, sem voz. Automaticamente tirou um maço de notas do bolso e depositou-as sobre o balcão. Ato contínuo girou nos calcanhares e correu, correu sofregamente à cata de sua casa.
- Um momento, senhor ! O seu troco...
Havia muita gente em frente ao prédio. E polícia, também, carros com todas aquelas luzes vermelhas e brancas girando, como nos filmes de televisão. E a indefectível faixa amarela isolando toda a área. Ele já não corria, de nada mais adiantaria.
Caminhando lentamente, como se ainda estivesse à beira-rio, chegou ao local interditado. Na porta do pequeno prédio ninguém lhe impediu a passagem. Ao contrário, policiais facilitaram a sua entrada. Havia moradores espalhados pelos corredores.
Subiu as escadas que davam para o seu andar, sem ser molestado. A porta do seu apartamento estava aberta de par em par e um policial fazia perguntas àquele seu vizinho a quem cumprimentara ao sair, pela manhã. Quando o viu, o homem arregalou os olhos :
- É este, sargento ! É este o homem que vi saindo do apartamento do sr. Gabriel, pela manhã !
- Como, senhor ?
- Ele cumprimentou-me, eu me lembro bem ! Estava ainda clareando o dia, mas pude ver perfeitamente. Eu não me enganaria !
- Impossível, senhor... Este homem é o detetive Petrúcio. Ele esteve conosco por toda a noite, na delegacia. Talvez a penumbra tenha-o induzido à confusão...
O recém-chegado sorriu para o senhor, que emudeceu, extático. Depois, entrou na sala. E viu Gabriel D’Aquino sentado na sua poltrona, em frente à televisão, a cabeça pendente para a frente. Estava morto.
Olhou para a mão esquerda inerte, de onde ainda prendia um toco de cigarro. Queimara até atingir os dois dedos que o seguravam, o médio e o indicador.
Deixou-se ficar ali, de pé ao lado da poltrona, o olhar fixo em Gabriel D’Aquino, o homenzinho misterioso, soli-tário, sempre inconformado com a sua identidade.
Sua mão, no bolso do sobretudo de gabardine, aper-tava ainda nervosamente o terceiro volume da série poli-cial: “A estranha morte de Gabriel D'Aquino”.