quinta-feira, 14 de abril de 2011

PEDRO E LAURA


 Direitos autorais reservados
Outubro 1977



Cinco horas da tarde. Àquela hora, Copacabana fervilhava. Não a praia, que esta, a qualquer hora do dia ou da noite será sempre uma festa, na areia ou fora dela - mas a avenida, que já não é mais de Nossa Senhora, é só de Copacabana.
Calçadas cheias, gente que vai, gente que vem, gente que já saiu das areias e agora se divertia com as vitrines coloridas, com os camelôs apregoando suas mercadorias em altos brados e os guardas regendo o trânsito com seus apitos, diga-se de passagem, um tanto enervantes. Mas ninguém reclamava, parecendo estarem todos de bem com a vida. Copacabana é e será sempre uma festa permanente.
Já a Barata Ribeiro não tem tanto charme. É uma rua apenas barulhenta, ruim para moradia, sem todas aquelas lojas atraentes, mas... “contaminada” pelos inexplicáveis encantos do bairro. Por isso, cheia também de gente que vai e gente que vem... Rua dos botecos, dos horti-frutis, das farmácias.
Rua do “Ponto de Encontro”, discreto e silencioso, calmo e sossegado, em contraste com o burburinho nervoso do outro lado da porta. Mas não conseguia ser um lugar escondido, e nem Pedro e Laura queriam isso. Não estavam esquivando-se de ninguém, nada havia a ocultar.
Não por enquanto.
Tampouco sabiam exatamente o que queriam um do outro. O ambiente ajudava a criar uma atmosfera proibida, até então não vivenciada pelos dois. Haviam tomado uma mesa de canto, conversavam em voz baixa, alegremente, e sequer haviam notado que o chocolate fumegante já havia sido servido.
Olhavam-se nos olhos. Melhor dizendo: examinavam-se minuciosamente. Sentiam próximo o momento da decisão, por isso prolongavam a conversa medrosamente. Eram, naquele momento, os mesmos adolescentes de há vinte e cinco anos atrás.
Vinte e cinco anos! O tempo não havia deixado marcas profundas em nenhum dos dois. Laura era uma mulher bonita e atraente. Conservava seu sorriso franco e era incapaz de exibi-lo sem sinceridade. Pedro mantinha o mesmo porte ereto e esguio da mocidade. Formavam um bonito casal.
Sim, eles examinavam-se docemente, talvez fantasiando recompor aqueles vinte e cinco anos, longo hiato durante o qual nem uma só vez haviam se avistado, nem uma singela notícia haviam tido um do outro, até se encontrarem, casual-mente, naquela manhã.
Pedro já estava de férias há uma semana. Porém outros assuntos, alheios ao trabalho, haviam-no impedido de sair do Rio com a família em viagem, o que faria, entretanto, dali a três dias. Aproveitava a manhã fria, típica de final de outono, quando o céu azul e o sol claro não são suficientes para aquecer o ar, para um passeio na pequena praça perto de casa, enquanto Beatriz ultimava as tarefas caseiras da manhã. E o filho Renato, também em férias, apressou-se em segui-lo.
Era saudosista. Caminhava distraidamente, lembrando-se das poucas vezes que ali estivera com os filhos, pequenos ainda, para o banho de sol matinal.
Renato também só se lembrava das saídas com sua mãe e o irmão, quando era hábito passarem os três, às vezes, manhãs inteiras em brincadeiras. Agora, já rapazinho, rememorava com o pai os bons momentos da sua infância.
Pedro parou para comprar um jornal, enquanto Renato dirigia-se a um banco próximo, onde já havia uma jovem senhora sentada. Notou que ele sentara ao seu lado e que conversavam animadamente, e reparou a facilidade com que Renato fazia novas amizades. Ele era o oposto do pai, que embora não chegasse a ser um introvertido, não tinha a menor tendência para entabular conversas de rua.
Mas pareciam mesmo velhos conhecidos, aqueles dois. Quando ele chegou mais perto, Renato adiantou-se:
- Venha, pai, venha conhecer a tia Laura!
Pedro imediatamente uniu aquele nome ao seu antigo amor de adolescente. Logo procurou, na fisionomia da moça, os traços daquela menina-moça que havia sido sua paixão.
- Eu a reconheci assim que a vi, pai! E faz tanto tempo! Tia Laura sempre vinha aqui na praça com Patrícia, e enquanto conversava com mamãe, brincávamos nos três, eu, Patrícia e o Eduardo...
Era Laura...
Como Renato, também Pedro a reconheceu assim que a viu... Vinte e cinco anos depois do último encontro, quando deram por terminado um daqueles namoros da adolescência ao qual os jovens se entregam trocando juras de amor eterno... Por todo esse tempo haviam caminhado dentro do mesmo labirinto, sempre em direções opostas, sem jamais se encontrarem. E de repente, ali estava a jovem senhora, sentada à sua frente.
Pedro percebeu, pelo seu olhar, que também ela o reconhecera. Mas repentinas fantasias fizeram com que ambos, naquele momento, esquecessem o passado, fazendo com que Renato nada percebesse.
- Tia Laura, quero lhe apresentar o meu pai...
- Muito prazer, “tia” Laura... - Pedro brincou, nervoso, enquanto ela lhe estendia a mão.
- Igualmente...- foi o que Laura conseguiu dizer.
Aquela voz, aquela mãozinha fina e delicada transportaram Pedro, por breves instantes, aos bons tem-pos em que nada mais importava, além do amor eterno... enquanto durasse, como disse o poeta.
- Como está Patrícia? -perguntou Renato, cortando, com suas palavras, o silencioso colóquio - Eu acho que não a reconheceria. A senhora, tia Laura, não mudou nada, não me foi difícil reconhecê-la. Mas Patrícia deve estar uma moça...
Somente Renato falava. Pedro e Laura tentavam - e estavam conseguindo - disfarçar a emoção do reencontro. Nenhum dos dois se preocupava por haverem omitido a Renato tão antiga ligação.
Por fim, Laura respondeu a Renato:
- Sim, ela está uma moça... e uma moça muito bonita! Aliás, Renato, você mesmo pode confirmar o que digo. Aí vem ela...
Patrícia vinha se aproximando, para encontrar-se com a mãe. Era realmente uma moça encantadora. Seus traços, sua maneira de ser lembraram a Pedro a sua Laura de outros tempos.
Crescia a emoção, aumentavam as fantasias.
Patrícia foi “reapresentada” ao rapaz por Laura, que em seguida voltou-se para o seu ex-namorado:
- Minha filha, Pedro...
- É você outra vez, Laura...
Os dois jovens não perceberam a intimidade do rápido diálogo. Logo se entretiveram em animada conversa, afastando-se de seus pais em passeio pela praça, relembrando também as brincadeiras da infância.
Pedro e Laura viram-se a sós.
- Laura, Laura... como você está bonita... Onde você esteve esse tempo todo, que nunca nos encontramos? Eu nunca me afastei do Rio...
- Tampouco eu, Pedro... Quantas vezes até devemos ter-nos cruzado, não é verdade? Quanto teríamos para conversar...
Calaram-se. Veio-lhes irreprimível desejo de recomeçar o que haviam interrompido. Contiveram-se, talvez um aguardando que o outro tomasse a iniciativa.
- Por que não dissemos às crianças que já nos conhecia-mos ?
- Não sei...
Laura respondera suavemente, baixando os olhos, como fazia quando enrubescia. Mas ela sabia, tanto quanto ele. Começava a crescer a fantasia. Seus filhos, suas famílias, nada parecia ser empecilho para os dois, agora que novamente haviam se encontrado. Esqueciam-se, naquele momento, que o sério compromisso da juventude desvanecera-se com o tempo e as lembranças que agora os excitavam deveriam permanecer apenas como doce recordação de uma época que se foi.
Já não se pertenciam. Cada um tinha seu dono e era dono de alguém... Aquilo sim, era real, verdadeiro, e, para felicidade de ambos, amoroso e sincero.
Mas eles sentiam-se momentaneamente livres diante do imprevisto que os colocara frente a frente, como a lembrar-lhes que ainda havia tempo para se conhecerem, que ainda não era tarde para terminar o que duas crianças haviam começado...
E foi embalado por essa romântica e falsa liberdade que Pedro sussurou-lhe, apressado, quando percebeu que seus filhos vinham retornando do curto passeio:
- Conhece o “Ponto de Encontro”? Eu espero você lá às cinco horas.
Não houve tempo para a resposta, mas Pedro sabia que Laura não faltaria, pois ela enrubesceu e baixou os olhos, novamente...
As paredes forradas de madeira escura, os “plaffoniers” de luz mortiça pendentes das paredes, os garçons que deslizavam entre as mesas, sem ruído, tudo contribuía para criar um clima propício à expansão das mútuas intenções.
Laura estava ainda mais bonita, e Pedro encantava-se com ela, numa felicidade pueril. Trocavam elogios, como se estivessem ali iniciando um relacionamento com as mais sérias intenções...
Despreocupada, ela em dado momento até pensou na família. O marido, como de costume, só chegaria em casa mais tarde, e Patrícia estava com Renato, que se apressara em convidá-la para um cineminha. Não via nenhum problema em estar ali com um velho amigo. Apenas um velho amigo. Tentava enganar-se, como para justificar o seu procedimento.
Pedro, olhava-a, sorrindo. Quis saber mais:
- Você é feliz, Laura?
- Sim, Pedro. Muito. Alberto e eu somos como que uma pessoa só. Sempre nos amamos como dois adolescentes apaixonados...
Ela percebeu, já tarde, que não havia sido feliz na comparação. Era um lugar-comum, mas exprimia a verdade. Ali mesmo estavam dois adolescentes apaixonados que também haviam sido, um dia, uma pessoa só...
Continuou:
- Em todos esses anos que estamos juntos não tivemos desavenças mais sérias do que as que a maioria dos casais enfrenta, para acabar com as arestas do relacionamento. Sempre existem, não é mesmo? Mas Alberto é tão delicado e atencioso que eu não consigo imaginar-me ligada a outro homem... E você, Pedro?... Bem... eu conheço Beatriz, de quando íamos nas manhãs, lá na praça, há muito mais tempo do que você imagina. Jamais poderia imaginar que aquele Pedro de quem ela falava sempre, em verdadeiras declarações de amor, era você...
- Também eu achei a minha companheira certa, Laura...
Apesar do diálogo, quem de longe os visse, sem ouvi-los, imaginaria tratar-se de um casal apaixonado. A mão de Pedro procurou meigamente a de Laura, sobre a mesa.
Ela aceitou-a:
- E agora, Pedro, por que foi acontecer isso?
- Não sei, Laura. Sei apenas que tenho pensamentos irrefreáveis.
Como que acordada por aquelas palavras, Laura, com um movimento rápido, retirou sua mão de baixo da do seu companheiro. Pedro compreendeu. Ele também, apesar dos “pensamentos irrefreáveis”, estava confuso, não tinha certeza do que queria. Eram “livres”, mas sentiam-se impedidos por eles próprios de ressuscitar aquele amor juvenil.
Fez-se um prolongado silêncio, enquanto eles, com um sorriso nos lábios, olhavam-se ternamente.
Foi Laura quem retomou a palavra.
- Que queremos nós, Pedro? - a conversa era ao mesmo tempo clara e velada - Ambos achamos que estamos sabendo o que queremos, não é mesmo? Mas seja o que for, não há de combinar com as nossas realidades.
Laura talvez quisesse ouvir de Pedro argumentos que lhe mostrassem estar errada. Embora no fundo ambos soubessem ser impossível o seu desejo, lutavam contra a lógica, como que querendo substituir a razão pelo coração. Mas quanto mais dialogavam, mais percebiam o absurdo das suas intenções.
Tinham vontade de silenciar, de ficar calados, de não ouvir as mútuas ponderações, para poderem se amar em silêncio, ignorando as evidências que teimavam em impedir a consumação de tão doce fantasia.
Mas não conseguiam, era falso e irreal o desejo irresponsável e quase infantil. Às lembranças da juventude sobrepunham-se outras, reais e recentes.
E Renato e Patrícia, naquele momento, talvez estivessem recomeçando o que eles haviam interrompido, há tantos anos atrás. Seus próprios filhos...
Curiosa, esta vida...
Alberto e Beatriz, tanto quanto eles próprios amantes fiéis, dentro em pouco começariam a sentir as suas faltas, preocupando-se sadia e inocentemente com o paradeiro de ambos. Todas estas lembranças assomavam, ao mesmo tempo, nas duas tontas cabecinhas, enquanto olhavam-se fixamente, aparentando amor eterno...
Foi ainda Laura que primeiro acordou do devaneio, e a pergunta que fez transportou Pedro, de vez, da fantasia para a realidade:
- Que horas são?
- Quase sete! Puxa, como passou rápido o tempo... Acho melhor irmos...
- É... É melhor...
- Eu levo você em casa. Acho que Alberto e Beatriz já devem estar preocupados com a nossa demora!
E, sorrindo:
- É claro que nenhum de nós dois disse onde ia...
O inusitado desfecho não lhes soou inesperado. Pareceu resultado de prévio acordo, cujo mediador foi a razão. Nenhum dos dois estranhou o fim do diálogo, preocupados demais que estavam, agora, em não desapontar suas almas gêmeas. Ao mesmo tempo sentiam estar se livrando da pesada e doce carga que desde a manhã lhes caíra sobre os ombros... 
Saíram apressados, de mãos dadas, num gesto inocente e impensado. Sobre a mesa, o gordo troco não reclamado era prova de que não havia tempo a perder.
E o doce chocolate permaneceu intocado... e esfriou...

                                                                   

sábado, 9 de abril de 2011

RAIO DE SOL





Direitos autorais reservados


Guardei para mim esta história, por bem uns cinquenta anos.
É a história de uma música. Talvez com receio de que ela não fosse levada muito a sério, não a dividi com ninguém. Aliás, se não tivesse acontecido comigo, acho que nem eu mesmo acreditaria.
Eu estava chegando em Barbacena, com as luzes do crepúsculo. Não conhecia a cidade. Entrei pelas ruazinhas estreitas, propositalmente sem dar muita atenção a elas, às casas ou às pessoas. Uma vez me disseram, muito acertadamente, que em viagem, quando se chega a uma cidade pela primeira vez, nunca se deve fazê-lo debaixo de um escaldante sol de meio-dia, após horas de estradas estafantes. A chegada deve coincidir com o lusco-fusco da noitinha, quando a penumbra esconde o cansaço, a poeira, e quem sabe? até o mau humor...
As descobertas do que a cidade tem para nos mostrar devem ser feitas após uma entrada discreta no hotel, um banho quente, um belo jantar e uma noite bem dormida. Na manhã seguinte tudo será novidade, tudo será mais belo aos olhos repousados e propensos a relevar os pontos, digamos assim, não tão turísticos do lugar...

Bem que eu tentei...
Fui direto para o hotel. Estacionei na garagem, e tomei um apartamento. Após o banho, desci para jantar. Tudo como deveria ser feito. As belezas ficariam para as horas da manhã. Se bem que seria um tour bem rápido, porque meu destino era um pouco mais adiante de Barbacena. Eu ia até Ressaquinha, terra do meu pai. Ele me havia feito um pedido, antes de me deixar.

Velhinho, expirou em meus braços. No dia em que se foi, estava contando-me suas histórias de infância, cheias de nostalgia... De suas idas a Barbacena, que para ele era o paraiso, pois, aos seus olhos de criança acostumada às lides da roça, a cidade das rosas era uma metrópole. De como gostava de ouvir a banda tocar nos recitais de domingo, no coreto da praça. Lembrou-se de “Raio de Sol”, a música que ele mais gostava. Estava feliz...
Então fez uma longa pausa, que eu respeitei. Seus olhos estavam perdidos no infinito, que lhe escapava pela janela aberta. Depois, voltou-os lentamente para mim e, com um fio de voz, mandou que eu apanhasse um envelope nos seus guardados:
- Meu filho... depois que eu me for, vá até Ressaquinha... procure lá o Ariosto e entregue a ele este envelope. E em mão. Não quero que vá pelo correio. É muito importante... - e repetiu - Ariosto... não se esqueça...
- Ariosto... Pode deixar, pai.
Ainda tentou orientar-me mais, sobre o que seria tão importante missão. Mas todas aquelas lembranças haviam si-do demais para ele. Emocionado, calou-se e sorriu para mim, fechando os olhos.
- Dorme um pouquinho, pai. - ainda falei - Depois a gente conversa mais...
Mas... logo depois ele se foi, sem dar mais uma palavra.
O envelope me havia sido entregue aberto, mas não tive curiosidade de conhecer seu conteúdo. Isso, aliás, foi uma herança que ele me deixou - se a correspondência não me pertencia, não poderia ser aberta.

Sentei-me à mesa, aguardando que fosse servido o jantar. Era já tarde, o restaurante estava vazio. Distrai-me, examinando o bom gosto da decoração do salão. O ambiente era calmo e silencioso. Como, de resto, toda a cidade. Respirava-se paz, ali.
Comecei, então, a ouvir sons distantes e característicos de músicos afinando seus instrumentos, sons que me eram bem familiares. Eram instrumentos de uma banda, sem dúvida, e... bandas se apresentam em coretos. Por certo Barbacena ainda teria um coreto...
Eram trombones, pistons e clarinetes, naquele concerto desordenado que sempre anuncia o início de um recital. Sem faltar os simpáticos graves de uma tuba.
Por isso, esqueci meu jantar, e meus planos primeiros. Iria começar a ver as belezas da cidade, mesmo naquela noite. Por nada perderia um recital da banda que eu imaginava existir. Com um sorriso e um “com licença”, deixei o garçom com a comanda na mão e desci as escadas em passo acelerado. Na gerência, perguntei que sons eram aqueles e de onde vinham, já sabendo a resposta de antemão.
- Da praça, senhor. A banda vai se apresentar.
- Em qual praça?
- A única...
Ganhei a rua. Estava excitado como uma criança. Um recital de banda! Há quanto tempo eu estava afastado de coisas tão boas e tão simples... Era um sábado, o movimento de pessoas era grande. Pareceu-me que todos se dirigiam à praça, em passos lentos e compassados, como que saboreando a calma e a tranqüilidade interiorana.
Não estava errado.
- É longe, a praça?
- Não, senhor. Logo ali... - O rapaz mostrou-me a direção distendendo o lábio inferior, como bom mineiro.
Já chegando, ouvi três pancadinhas, como da batuta de um maestro na estante de partituras. Logo silenciaram-se os instrumentos. Acelerei o passo, por nada perderia uma única nota. Quando dobrei a esquina, lá estava a praça. Parecia uma ilustração viva para aquelas histórias que eu ouvia contar, quando criança.
O imponente coreto, de estrutura metálica, - certamente importada da Europa - todo iluminado, reluzia. Era a única iluminação da praça, propositalmente mantida na penumbra, salientando o austero clima do concerto. Sentados em suas cadeiras, ostentando vistosos dolmans vermelhos e calças azuis, cabeças encimadas por quepes brancos, os músicos permaneciam imóveis como soldadinhos de chumbo, com seus instrumentos na posição, aguardando o sinal do maestro, que, em pé, empertigado em frente a eles, mantinha os braços levantados, segurando a batuta e olhando para cada um dos seus comandados, a ver se estava tudo em ordem. O povo, em volta, respeitosamente aguardava, silencioso.
Parei, ainda de longe, para deliciar-me com a cena. A visão era mágica. Como um cartão-postal.
Então, de repente, após o indefectível “um, dois, três”, com um movimento brusco da batuta o maestro deu início a um dobrado.
Reconheci a música, nos seus primeiros acordes.
Era “Raio de Sol”.
Um tanto modificada pelo arranjo, mas... era “Raio de Sol”...
Ali onde estava, fiquei. Eu não precisava chegar mais perto. Aquele quadro vivo, na minha frente, tocava-me fundo. Não consegui conter a emoção. Lembrei-me de meu pai, de seu assovio forte e estridente entoando “Raio de Sol”, enquanto trabalhava. Lembrei-me de como aprendi cada nota daquela música, de como, ainda garoto, tentava assoviar como ele, sem nunca conseguir, de como ele ria das minhas tentativas...
- Tem que ter pulmão... Um dia você vai conseguir...
Não movi um só músculo até o final da música. Cada nota levava-me mais e mais longe, alheio a tudo o mais o que se passava em volta. Ao final, as palmas trouxeram-me novamente à praça do coreto, mas... por pouco tempo. A banda iniciou o seu segundo número, que já não mais sei qual foi.
Eu continuava ouvindo “Raio de Sol”.

Então, foi aí que aconteceu...
As pessoas em volta do coreto, os músicos, o maestro, nós todos, enfim, começamos a ser envolvidos por uma suave neblina, como se ela nos estivesse levando para longe dali. Os sons da banda, aos poucos baixando em intensidade, eram substituídos por um tênue assovio, que entoava a mesma melodia. Ao mesmo tempo, o som fanhoso de uma rabeca fazia a “segunda voz”, uma terça abaixo.
A praça, agora, estava vazia.
Mas... não era a praça onde eu estava. Era outra praça. Era outro, o coreto.
O frio do outono, trazido por suave e agradável brisa, acentuava a magia do ambiente, envolto em uma claridade indefinida. Eu não sabia se era noite, se era dia.
Lentamente, senti que me aproximava do coreto, contornando-o. Vi, então, do outro lado, uma criança, que olhava para o alto como se ainda ali estivesse a banda. Trajava roupas pobres, tinha os pés descalços. Parei ao seu lado. O menino olhou-me e sorriu, encostando o dedinho indicador no ouvido:
- Está ouvindo? É “Raio de Sol”...
Respondi com um meneio da cabeça, afirmativamente.
- E eu sei quem é que está assoviando...
- Você sabe? E quem é?
- É o velho... Quase não se ouve, ele assovia muito baixinho... Já falei pra ele: tem que assoviar forte, mas ele gosta assim...
- E quem está tocando o violino?
- Não é violino, moço... é rabeca... É ele, mesmo... Ele é tocador de rabeca... Ele faz as rabeca e vende, também.
- Ah, sei. Onde ele está?
- Ali, ó. Trabalhando... Eu estou sempre com ele. Gosto de ver ele fazer e depois tocar as rabeca.
Apontou para o nada.
- Sim? Mas onde ele trabalha?
- Quer que eu te leve lá?
Não esperou que eu respondesse. Tomou-me pela mão, e guiou-me até uma pequena e tosca construção, onde um senhor, já bem idoso, rodeado de primitivas ferramentas de marcenaria, empunhava uma rabeca, sentado em um tamborete. Ao lado dele, outro menino observava atento o que fazia.
Quando nos viu, o luthier da roça baixou o instrumento e parou de assoviar.
- Seja bem vindo...
- Muito obrigado.
O velho sorriu para o meu acompanhante:
- Quem é este senhor?
- Ele veio com o “Raio de Sol”.
- Então, é bem vindo mais uma vez...
- Senhor... Onde estou?
Ele sorriu, como que dizendo “que importância tem isso?”, mas não respondeu. Levou o instrumento ao ouvido, tangendo uma das cordas várias vezes, como que apurando a afinação.
- Vejo que um dos meus “ajudantes” o trouxe.
Sorri para o menino.
- É seu ajudante?
- Meu braço direito... Vai me substituir, quando eu for embora. Disse-me que quer aprender a fazer rabeca...
E depois de uma pausa:
- Gosta de “Raio de Sol” ?
- Muito. Esta música faz-me retornar à infância. Meu pai gostava muito de assoviar, e sua música predileta era “Raio de Sol”.
O velho olhou para o garoto e sorriu.
- É, eu sei...
Não procurei entender aquelas palavras. Não eram apenas elas, o que eu não entendia.
- Só não estão tocando a minha música do jeito que eu fiz...
Admirei-me:
- Mas... então é de sua autoria, “Raio de Sol”? Sempre pensei que fosse de autor desconhecido... Meu pai nunca...
Ele interrompeu-me:
- É deste seu criado, sim senhor. Mas, não faz mal... Deixa eles tocarem assim mesmo, está bom... Eu também nem escrevi a partitura direito...
Tirou do bolso da camisa, então, uma folha de papel dobrada e entregou-a a mim. Era uma partitura, escrita em um papel liso, comum, manchado pelo tempo, onde até as pautas haviam sido desenhadas a mão. Encimando as notas, o título.
Ao ler a partitura, o pouco que eu entendia de música me fez reconhecer a melodia, ali escrita do jeito que eu a conhecia. Devolvi-lhe o papel, que ele cuidadosamente dobrou e guardou novamente.
- Vou confiar essa partitura a alguém, algum dia...  
- Quer dizer, então, que estou diante do autor de “Raio de Sol”...
- Pois é...
- É pena, meu pai já não vive. Ele gostaria muito de saber disso.
- Quem sabe?... Dê tempo ao tempo...
O velho era enigmático, e por certo não me deixaria desvendar seus segredos. Não sei nem se de alguma coisa adiantaria tentar fazê-lo.
Ele empunhou a rabeca e começou novamente a tocar.
Então, mais uma vez a etérea neblina começou a me envolver. E aos pouco os acordes do instrumento foram mesclando-se ao som de palmas, que me fizeram retornar à praça de Barbacena.
Quando o recital acabou, corri a cumprimentar o velho maestro, elogiando-o pela condução da banda. Perguntei-lhe se ele sabia de quem era aquela primeira música da apresentação, não lhe declinando o nome.
- Meu amigo, não me lembro quem é o autor e nem se tem nome. Venho trazendo essa música na cabeça, desde criança... Então, um dia resolvi de escrevê-la, como pude. Depois, mostrei-a aos meus músicos, e eles pediram-me para fazer um arranjo para a banda. Foi o que o senhor ouviu. Mas não ficou como eu queria. Parece que falta alguma coisa...
Concordei plenamente.
Ainda fiquei em Barbacena por mais um dia, na esperança que o insólito encontro com o “fazedor de rabeca” se repetisse, pois a banda se apresentaria novamente, seria domingo. Mas... nada mais aconteceu. Na segunda feira, cedo, parti para Ressaquinha, a procurar o Ariosto, como havia prometido a meu pai.
Entrei no povoado ainda com as luzes da manhã, e dei razão a quem havia dito ser melhor chegar com o crepúsculo. A terra natal do meu pai não era um lugar muito bonito.
Eu não tinha noção por onde começar a minha procura, mas não seria difícil, o lugar era muito pequeno. Comecei a dar umas voltas a esmo, a ver como iria começar a minha busca, quando, de repente, na curva de uma rua, meu coração bateu mais forte.
Deparei, no centro de uma modesta praça, com o mesmo coreto que vi, envolto em bruma, no meu devaneio em Barbacena. Olhei em volta, procurando nem sei mais o quê. E vi, numa ruela bem perto da pracinha, o galpão até o qual eu havia sido conduzido pelo pequeno ajudante do fazedor de rabeca. Estava abandonado, com o mato impedindo a entrada e deixando ver a porta descaída, meio fora dos gonzos. 
Parei o carro, desci e fiquei olhando para a tosca construção.
- Meu Deus! - exclamei, em voz alta - Então você existe...
- O senhor disse alguma coisa? - Era um senhor, que me surpreendeu pensando alto.
- Bom dia, amigo... - falei, meio sem jeito, como um menino que tivesse sido apanhado numa travessura - Diga-me, por favor: este barracão... Há quanto tempo esta assim, abandonado?
- Ih, faz é tempo...
- Não era aqui a oficina de um artesão? Um homem já de idade, sempre com uma criança que ele dizia, brincando, ser seu ajudante...
- Então?... Era o fazedor de rabeca... Mas ele morreu faz tempo, meu senhor... E a criança virou homem, largou da cidade faz tempo, também.
Resolvi, então, iniciar minha pesquisa ali mesmo:
- O nome dessa criança seria Ariosto, por acaso?
- Ariosto? Não, senhor. Não me lembro do seu nome, mas não era Ariosto... - O homem coçou o queixo - Mas... tinha um Ariosto aqui em Ressaquinha, por essa ocasião. Esse, então, foi embora ainda criança.
E arrematou, depois de uma pausa:
- Era ‘artista de música’... Aqui não tem lugar pra músico. Acho que ele virou condutor de banda, lá em Barbacena...

Artista de música...
Minha procura havia terminado.
Naquela manhã mesmo, voltei a Barbacena e corri a procurar o velho maestro. Sabia, agora, o que continha o envelope que meu pai pedira que fosse entregue a ele. E sabia quem era o “ajudante” a quem o velho fazedor de rabeca havia confiado a partitura de “Raio de Sol”...







segunda-feira, 4 de abril de 2011

A RATOEIRA


Set - 2010
Direitos autorais reservados
Eu tinha seis anos. Ou sete, não sei. Não éramos pobres, mas também nada sobrava. A vida era ali, ó, controladinha. Um dia, minha mãe comprou pra nós três - as últimas de doze - uns tamanquinhos, daqueles que os portugueses usavam, que nada mais eram do que um pedaço de madeira, recortado em forma de sola de sapato, com uma tira de couro na frente, onde se enfiavam os dedões dos pés. Os nossos eram pequeninos, delicados, mas iguaizinhos aos grandões. Iguaizinhos, não; tinham umas tirinhas no calcanhar, que ajudavam a mantê-los calçados, porque criança, sabe como é, nunca para quieta.
Eu adorei os tamanquinhos. Eram a maior novidade, usados só à noitinha, depois do banho, quando as brincadeiras já eram mais calmas e não havia possibilidade de estragá-los. A vaidade não tem idade, e comigo não era diferente. A toda hora olhava para meus pés, contemplando meus novos enfeites. E tanto olhei, tanto olhei, que comecei a implicar com aquelas tirinhas. Achava que não tinham nada a ver, que as haviam posto ali porque éramos crianças, por isso não saberíamos andar sem elas. Mas eu não era mais criança, pra que aquelas tirinhas? Ficava feio, o tamanquinho.
Eu tinha que dar um jeito. Não tive dúvida: armei-me de uma tesoura e decepei as incômodas tirinhas. Agora sim, sentia-me adulta em frente às minhas irmãs...
Mas minha alegria durou muito pouco. Quando minha mãe viu aquilo, passou-me o maior sabão, e disse-me que eu não perdia por esperar.
- Deixa seu pai chegar... - era a ameaça da época - ele vai saber direitinho o que fazer! Onde já se viu? Pensa que dinheiro dá em árvore? Seu pai trabalha muito para comprar pra vocês as roupas e os sapatos, e você faz isso? Deixa estar...
Eu não entendia onde estava o crime. Pois se os tamanquinhos ficaram bem mais bonitos nos meus pés... Só fiz melhorá-los...
Aguardei a noite com ansiedade. Meu pai não era nenhum carrasco, ao contrário. A violência, a injustiça e até simples alteração de voz não faziam parte de seu cardápio. Mas pareceu-me que o que eu tinha feito teria sido algo muito grave, do jeito que mamãe esbravejou... Por isso, a noite custou a chegar. Já estava me sentindo pendurada na corda, como naqueles joguinhos que a gente fazia descobrindo as palavras e colocando-as em cima dos tracinhos. Era ré confessa.
E a noite chegou. Junto com ela, papai. Como todos os dias, beijou a filharada, a mim também. e eu ressabiada. Depois foi ter com mamãe, no quarto. “É agora”, pensei, naquela expectativa que só as crianças com culpa ficam. Depois de um tempo, me chamou:
- Filha, vem cá.
Quando cheguei no quarto ele estava datilografando alguma coisa. Demorou tanto, em silêncio, que só fez aumentar minha angústia. Quando acabou, tirou o papel da máquina, sorriu pra mim, e disse:
- Princesa, você hoje fez uma coisa que não foi muito bonita. Sua mãe comprou uns tamanquinhos bonitos pra vocês, não foi? Aquelas tirinhas são pra vocês poderem correr, brincar sem que eles saiam dos pés... Os tamancos grandes não têm, porque os adultos não correm e nem brincam... E os tamanquinhos não ficam feios por isso...
Eu olhava pra meu pai desconfiada, com o choro preso na garganta. Ele era todo bondade.
- Não é mesmo?...
Disse que sim com a cabeça. Estava envergonhada com o que havia feito, e ainda não conseguia dizer nada. Ele estendeu-me o papel que tirara da máquina.
- Olha o que eu escrevi. Vê se você aceita...
Era mais ou menos isso:
                           
                           DECLARAÇÃO
Eu, Maria, declaro perante meu pai e duas testemunhas, que prometo nunca mais cortar as tirinhas dos tamanquinhos que me forem dados por meus pais, e que vou cuidar deles até que fiquem velhinhos.

Devolvi o “documento” a ele já com os olhos cheios de lágrimas. Ele fingiu não vê-las. Pegou duas estampilhas, aqueles selinhos compridos que se usavam nos documentos antigamente, colou-os um ao lado do outro, datou e pediu que eu assinasse em cima deles. Se eu concordasse, lógico... Chamou meus dois irmãos, fez com que eles também assinassem como testemunhas. Depois, disse:
- Vem cá... – aconchegou-me junto ao peito e deu-me um beijo na testa.
Tenho esse documento até hoje.

Já tenho um neto. Aliás, um, não. Três.
Um dia, minha filha fez coisa parecida com meu neto.
Ela tinha tido uma infância muito boa, morávamos sempre em casas com quintais, onde sua levadice punha diariamente à prova meus nervos e minha paciência. Todas as vezes em que eu era “posta à prova”, me lembrava daquele “documento” que meu pai fez pra mim. Ele orientou-me e continua me orientando por toda a vida. (Um dia vou falar só de meu pai). Nunca perdi a calma e a tranquilidade, nem quando ela caiu de cima do abacateiro, ou quando escondeu os óculos no alto do dito cujo, nem ainda quando engoliu uma lampadazinha, depois de triturá-la na boca. Eu estava vacinada pelo documento que assinara sobre as estampilhas.
Ela, minha filha, cresceu sob a sombra daquele documento, eu pautava nele todas as minhas ações. E sem querer, isto é, sem perceber, passei para ela todos os ensinamentos que aquela folha de papel me proporcionou.
Não foi à toa que acabou fazendo coisa parecida com meu neto.
Já não morávamos mais em casas com quintais, mas em um nono andar, aliás, com uma vista maravilhosa. Talvez por isso, meu neto, do alto de seus dois aninhos, achava que podia ficar pendurado na janela olhando, não a paisagem, mas tentando conversar com os coleguinhas lá em baixo, no play.
- Eu tomo cuidado, mãe. - e chamava os amiguinhos lá de cima, pendurando meio corpo pra fora, como quem diz: “Já sou grande...”
Ela com certeza lembrou-se do dia em que me pregou o mesmo susto, no apartamento da avó, quando me correu um gelo na espinha ao vê-la dependurada  na janela, só com as perninhas aparecendo e eu me aproximando em silêncio, sem um grito, as minhas pernas tremendo, até segurá-la  pelos pés...
Com certeza lembrou-se, porque olha só o que fez: foi à cozinha, apanhou um tomate e chegou na janela, perto do meu neto. Falou:
- Filho, joga esse tomate lá em baixo.
Ele gostou da travessura e jogou. Ela então pegou-o pelo braço e levou-o lá em baixo, no play. Lá, mostrou-lhe o tomate esborrachado no chão, manchando tudo de vermelho, e só disse isso:
- Se você cair lá de cima, vai ficar assim...
Dali pra frente ele só chegava na janela respeitosamente.

Um dia, quando ele crescer, mas não tanto que ainda não seja um homem, os perigos não vão estar numa janela, tampouco as artes não serão cair de um abacateiro ou cortar as tirinhas de um tamanquinho. O perigo será muito dissimulado, escondido entre o ar enfumaçado de um cômodo sombrio, ou entre o ruído ensurdecedor de uma rave. Então ele dirá - ou pensará consigo mesmo, sem nada dizer - “É só uma experiência, não irá me afetar. Paro quando quiser...”
Então alguém poderá lhe alertar:
- Meu filho, venha cá. Vamos armar esta ratoeira. Vamos botar um pedaço de queijo bem grande, tenta-dor, e esperar...
E veio o ratinho, sem desconfiar do perigo. Conseguiu tirar um bom naco apetitoso e correu salvo, vendo de longe a ratoeira desarmar...
- Agora, meu filho, vamos botar um queijinho bem pequeno e bem preso, e esperar...
E veio, outra vez, o ratinho. Puxou, puxou, o queijinho ficou firme. Então, a ratoeira desarmou e ele ficou preso... para sempre... Nunca mais se libertou...
Tomara que se chegar esse dia, ele se lembre da ratoeira e não queira nem experimentar a primeira vez.