quarta-feira, 30 de março de 2011

O ANTIGO DONO


 Direitos autorais reservados
 - Olhe, Edú!
Era um Packard 1937 que passava, reluzente como novo.
- Que beleza! Parece saído da fábrica... Você sabe que eu tenho um desses?
- Você? Um Packard?
- Não, não um Packard. É um Chevrolet, 1953. Uma dessas raridades, eu quis dizer. O meu rodou menos de dez mil milhas, até hoje. Foi um dia colocado sobre cavaletes de onde só saiu trinta anos depois, para minhas mãos.
- Não me diga! Como você conseguiu esse tesouro?
- Ganhei.
- Ganhou mesmo? De presente? Quem anda por aí dando carros de presente?
- Foi um amigo meu. Quer ver o carro? Vamos até lá em casa.
Deixaram o chopinho sem terminar e saíram. Em poucos minutos estavam na casa de Edú.
Ele morava sozinho, naquele subúrbio, há muitos anos. Mais da metade de sua vida. Casara-se cedo e logo enviuvara, sem filhos. O amor pela mulher fez com que não tentasse recompor sua vida a dois, preferindo permanecer na calma solidão da casinha modesta.
- Vamos continuar aqui? - Edú estendia ao amigo um copo de cerveja recém aberta, enquanto levava-o para a garagem.
- Olhe aí o bichão. Não vá lhe cair o queixo...
Por pouco não caía mesmo. Era realmente uma maravilha. Augusto nunca tinha visto nada igual. A pintura, negra, refletia tudo como um espelho, os cromados reluziam. Vidros “ray-ban”, pneus banda branca ainda originais, "power glide". Tudo como saído de fábrica. E o interior? Forração e teto de casimira, tapetes também originais. Apenas uma pequenina mancha escura no assento traseiro, menor que uma moeda, chamou a atenção de Augusto. Mas mesmo aquela mancha seria imperceptível, não fosse todo o resto impecavelmente conservado.
- Edú, puxa... superou as minhas expectativas! Então, um amigo lhe deu? Não acredito. Deve ser um amigo do peito. Que diabos você fez para merecer este presente?
- Nada. Não fiz nada. E nem o amigo é tão “do peito” assim. Na verdade eu nem conheci o antigo dono. Pensando bem, se fiz alguma coisa por ele foi depois que ganhei o carro.
- Depois?
- Há uma história. Quer ouvi-la?
- Claro que quero. Pelo jeito, deve ser uma história e tanto. Vem cá, não tem uma outra cervejinha?
Edú retornou à cozinha. Já com outra garrafa na mão, sentou-se ao volante. Augusto sentou-se ao seu lado.
- Sabe, eu sempre gostei de carros antigos, mas nunca pensei que teria um destes algum dia. Achava-os muito volumosos para um “hobby”, e se fosse dado a coleções na certa iria preferir os chaveiros. Mas frequentava as reuniões do “Veteran Car”, e foi justamente num desses encontros, em conversa com outros aficionados que fiquei sabendo da existência deste Chevrolet, trancado num fundo de quintal, sobre cavaletes e intocável, numa rua do Encantado. Até o nome do bairro parecia se referir ao carro...
Resolvi ir vê-lo. Quando cheguei em frente à casa, uma placa parecia querer me expulsar dali. Dizia: “O carro não está à venda.” E isso apesar da garagem ser fechada e da rua não se ver nenhum carro. Pensei em voltar dali mesmo, respeitando a intimidade de quem parecia prezá-la tanto. Mas naquela hora vinha saindo da casa um rapaz, e não resisti à curiosidade de ver o automóvel. Abordei-o:
- Curiosa esta placa. Geralmente servem para vender automóveis e não para escondê-los...
Ele sorriu.
- Pois é. Tivemos que fazer isso. Não tínhamos mais sossego, desde que se espalhou a notícia da existência do carro.
- É, eu sei o tesouro que você tem ali dentro. Escute... não poderia abrir uma exceção? Eu não quero comprá-lo, apenas vê-lo...
Foi assim que conheci o Chevrolet. Voltei lá outras vezes, fiquei amigo do rapaz. Gilberto era o seu nome. Conheci suas duas irmãs, sua mãe, e com o tempo fiquei um tanto íntimo da família, embora fosse uma intimidade relativa, com limites claros, que não passavam da sala e de alguns poucos assuntos.
Eu sentia que havia algum mistério envolvendo aquela família. Havia um quarto, sempre fechado, onde de vez em quando alguém entrava e saía em silêncio. Um dia, ouvi um pigarrear discreto,vindo lá de dentro.
- É meu pai - disse Gilberto, e baixou os olhos. Nada perguntei, não tinha liberdade para fazê-lo.
Minhas visitas continuaram, espaçadas. Eu respeitava o segredo da família e era querido por isso. Um dia, tempos depois, recebi um telefonema de Gilberto. Pedia que eu lhes fosse fazer uma visita. Estranhei. Ele nunca me havia telefonado, pois sempre partia de mim a iniciativa de procurá-lo. Apressei em atender o convite, estava curioso. O que teria havido que justificasse aquela atitude?
Encontrei a casa com as janelas abertas, como nunca tinha visto antes. Bati na porta e enquanto aguardava ouvi vozes e até mesmo risos. Senti que fui recebido, senão com alegria, ao menos sem a tensão a que já estava habituado. Da sala percebi que o quarto misterioso estava aberto, arejado e vazio.
A conversa girava sobre o trivial, quando, aproveitando uma pausa um pouco mais prolongada, Gilberto disse:
- Sabe, Edú, meu pai morreu.
Eu esboçava as minhas condolências, mas ele atalhou-me, como que para cortar-me a intenção.
- Estivemos conversando e resolvemos lhe dar o Chevrolet.
Ele passou da morte do pai para a doação do carro tão repentinamente e com tamanha naturalidade que não tive mais como transmitir os meus pêsames. Continuei com o assunto do carro, que estava parecendo o mais importante.
- Não faça isso, Gilberto. Esse carro vale uma fortuna. Não posso aceitá-lo. Posso, isto sim, encarregar-me de vendê-lo para vocês, pois não faltarão colecionadores dispostos a pagar um bom preço por ele.
- Não, não poderíamos vendê-lo. Sabe, era do papai. Desde que...
Olhou para a mãe, como se estivesse já começando a falar demais. Não recebeu, entretanto, o aval para continuar o assunto.
- Enfim, agora ele morreu... Edú, o velho queria que o carro fosse seu. Mais de uma vez nos disse isso.
Fiquei sabendo, então, que o velho me conhecia melhor do que eu pensava. Para surpresa minha, queria mesmo que o carro viesse para minhas mãos. Tinha certeza de que eu jamais o venderia e que continuaria cuidando dele como Gilberto o fazia. Não pude mais recusar. Mas aguçou-se mais a minha curiosidade. Havia algo que eu não estava conseguindo captar.
Dias depois trouxe o Chevrolet, e cuido dele talvez até mais do que cuidava Gilberto. Ele tinha a tarefa como obrigação, enquanto eu a faço com prazer.
Pouco tempo depois retornei à casa de Gilberto, para continuar tão boa amizade. Mas eles haviam se mudado, não deixando com nenhum dos vizinhos o novo endereço, como se estivessem querendo apagar todas as lembranças de uma fase desagradável de suas vidas. Talvez nessas lembranças me incluíssem, a mim e ao Chevrolet.
Edú fez uma pausa, que Augusto respeitou.
- Pois é, Augusto. Foi assim que me tornei dono desta raridade - disse Edú, batendo com as duas mãos no volante.
- Puxa, que história...
- É... Mas agora vem a segunda parte.
Edú não sabia se deveria ou não continuar a narrativa. Até ali havia narrado fatos; mas a história agora passaria a ser muito subjetiva, aceitável ou não.
- Vamos dar uma volta?
Edú já colocava a chave na ignição, certo de que o amigo não rejeitaria o convite. Ligou o silencioso seis cilindros sem problemas, como se estivesse num zero quilômetro. Logo estavam rolando pelas ruas do bairro, em direção aos subúrbios mais distantes, para onde ele se dirigia sempre.
- Gosto de passear por estes lados. As ruas por aqui ainda são calmas.
- Mas que conforto, Edú! Ele é realmente uma beleza... Mas, e o resto da história?
- Pois é, Augusto. Como já lhe disse, eu vinha, e venho até hoje sempre dar as minhas voltas por aqui. Um dia, num dos meus passeios, tive a sensação de que não estava só. Sabe como é? Como se alguém estivesse aí sentado onde você está. Era uma sensação tão forte que chegou a me incomodar. Mais de uma vez olhei para o lado, certo que veria alguém. É claro, nunca vi ninguém.
Augusto remexeu-se no assento.
- E então?
- Mais ainda : senti que estava sendo conduzido, de alguma forma, a um local determinado. Não me pergunte como. Entrava em uma rua, virava em outra, à esquerda, à direita... tudo como um autômato. Quando percebi o que estava acontecendo, não opus resistência. Deixei-me levar pela curiosidade, afinal nada havia a temer. Então, certa hora “mandaram-me” estacionar o carro.
Edú encostou o carro no meio-fio e desligou o motor. Virou-se para o amigo, estendendo o braço por trás do encosto, dizendo :
- Bem aqui, em frente a esta casa.
- Sério? De quem é essa casa?
- Na época eu não sabia. Carro parado, continuava a sensação de não estar só. Queria ver o que poderia acontecer e resolvi esperar, embora sem saber nem o que estava esperando.
Mais uma pausa. Augusto começou a sentir-se meio desconfortável, no lugar do “outro”.
- Vamos, o que aconteceu?
- Calma... Depois de cerca de meia hora, vi ali naquela varanda um senhor e um jovem saindo da casa, que depois vim a saber serem pai e filho. O senhor, em uma cadeira de rodas, era conduzido pelo rapaz.
Quando ele deu com os olhos no carro não conseguiu dissimular o susto, embora a paralisia lhe embotasse a expressão facial. Não se mexia, e falava com dificuldade. Ouvi quando o rapaz lhe perguntou: “O que foi, pai?”. Ele lhe respondeu alguma coisa em voz baixa, que não consegui ouvir, e ato contínuo também o rapaz olhou para o carro. O meu Chevrolet havia despertado qualquer lembrança, não havia dúvida.
Resolvi saltar, a pretexto de pedir uma informação qualquer, e aproximei-me de ambos. Perguntei pela rua Gastão Taveira, que sabia ser ali perto. O rapaz deu-me a informação correta e agradeci, esperando que ele aproveitasse a situação criada por mim para falar qualquer coisa sobre o carro. Assim ele fez.
“Bonito carro, o seu” - disse. Respondi algo que não me lembro agora. Percebi que o pai do rapaz dizia algo, quase num sussurro. “É ele, eu sei que é ele...”. O olhar,mantinha-o preso no Chevrolet. Perguntei:
- Como, senhor?
O rapaz tomou-lhe a frente:
- Foi um carro, senhor, e muito parecido com o seu, que deixou meu pai nesta cadeira de rodas para o resto da vida. Por isso, achou que estava novamente à frente do atropelador.
O pai continuou, com dificuldade:
- Uma mancha... uma manchinha no banco de trás...é o meu sangue... Ele ainda levou-me para o hospital, culpando-se todo o tempo, desesperado, desnorteado... Pobre homem, estava fora de si... Jamais soube da verdade... Como ninguém jamais soube... ninguém...
- Verdade, pai? Mas que verdade? De que o senhor está falando?
- Meu filho, eu havia preparado tudo, naquele dia... Fiz com que tudo parecesse ser um acidente, para que jogassem sobre o pobre homem toda a culpa pela minha morte, com medo de descobrirem a minha fraqueza... Mas eu queria morrer... Eu queria acabar com a vida, mas não consegui...
- Suicídio? Não é possível, pai!
O rapaz estava perplexo.
- Sim, suicídio... Mas... quase nada sofri... Apenas um filete de sangue manchou os meus lábios, gravando, no tecido, a prova da minha covardia em enfrentar a vida...
O rapaz olhou para mim. Acenei afirmativamente com a cabeça. Você pode imaginar como eu também estava me sentindo.
- Sim, posso. Talvez como eu mesmo me sinto agora - Augusto voltou a cabeça, procurando a pequena mancha na casimira - E então, o que houve depois?
- O pobre homem continuou a falar. Sabia que o remorso, que lhe doía por dentro, era o causador da sua paralisia, e não o atropelamento que provocou. Nunca tivera coragem para narrar a sua história até aquele momento. O impacto causado pela visão daquela máquina quase mortífera havia libertado a sua mente de trinta anos de prisão. Contou como havia sido socorrido pelo dono do carro, também aquele em estado de choque, repetindo monotonamente que ele havia sido o culpado; e como, deitado no banco traseiro a tudo ouvia, impotente, paralisado. Arrematou, dizendo que nunca mais tivera notícias do pobre motorista. Eu silenciei, para não lhe aumentar ainda mais o sofrimento. Mas sabia, agora, o segredo daquele quarto sempre fechado, daquela outra família que também sofreu, embora sem culpa, anos e mais anos, em silêncio...
Edú estava de cabeça baixa, olhando para o painel do Chevrolet. Ele próprio nunca havia contado a ninguém aquela história. Endireitou-se no assento, como para espantar as tristes recordações, e continuou:
- Sabe, Augusto, durante toda a conversa com os dois, pai e filho, permaneci com a sensação de estar acompanhado, de sermos quatro e não apenas três naquela calçada. Havíamos provocado um silêncio desagradável e não estávamos sabendo continuar o assunto, tantas eram as surpresas, de ambas as partes. Por fim os olhos do senhor, a muito custo, acharam os meus: “Procure o antigo dono, por favor... Diga-lhe a verdade, eu preciso libertá-lo da culpa, que nunca existiu... Ele deve estar sofrendo muito...”. Prometi-lhe que faria aquilo, embora sabendo ser impossível. Afastaram-se os dois, pai e filho. Entrei no carro e dei a partida, lentamente tomando o caminho de casa. Na volta, enquanto rememorava as palavras do pobre homem, lembrei-me do outro, do antigo dono.
Foi quando dei conta de que acabara aquela sensação de estar acompanhado. Não havia mais ninguém ao meu lado.
Ele também se libertara...
- Edú... Você não tem só um tesouro e uma história... É muito mais que isso...
- É verdade...

segunda-feira, 28 de março de 2011

À PROCURA DE UM FINAL

 



Sexta-feira. Eu estava sem dinheiro em casa para o fim de semana, mas felizmente a minha conta bancária estava recheada.
- Vou ao banco, mas daqui a pouco estarei de volta. - falei para minha mulher.
- Passa no aviário... Estou com vontade de fazer um franguinho ao molho pardo, o que é que você acha ?
Eu sempre achava excelente um frango ao molho pardo, embora o petisco me parecesse um tanto macabro, antes de entrar na panela.
- Não se esqueça de trazer o sangue fresco, separado...
Aquele “sangue fresco” me incomodava, mas... não me esqueci. Do aviário segui para o banco, debaixo de um sol a pino, verão de 40 graus, com o frango e seu sangue - fresco - debaixo do braço. Quando empurrei a porta giratória e recebi uma lufada de ar gelado, quase rezei uma ave-maria para o inventor do ar condicionado.
O banco estava quase vazio. Enquanto cuidava de garantir a provisão para o fim de semana, demorei-me observando o local. Do gerente ao segurança, todos  trabalhavam  calmos  e  tranqüilos,  com movimentos lentos, o que conferia ao ambiente uma gostosa atmosfera de paz. Os raros clientes também não se queixavam. Dava a impressão de que quanto mais demorasse o atendimento, melhor seria, mais tempo todos ficariam abrigados da canícula que derretia as pessoas lá fora.
- Confira, por favor.
Eu estava tão distraído que nem vi o dinheiro, já à minha disposição em cima do balcão. Ainda brinquei com a moça :
- Obrigado. Ainda bem que os assaltantes ainda não descobriram a nossa agência...
Enquanto contava o dinheiro, veio-me à idéia escrever mais uma das minhas histórias. A cena, uma agência bancária de bairro, calma e tranquila, como aquela. Um cliente, poeta bissexto, subitamente visitado pela inspiração, resolve sentar-se em uma das poltronas para por no papel mais um poema, aproveitando a tranquilidade do local. Enquanto escreve, de vez em quando percorre com os olhos o ambiente, aereamente mirando o infinito, em busca de uma ou outra rima que teima em não aparecer.
Mas o que ele nem desconfia é que de repente passa a ser vigiado... Estava sendo confundido com um possível planejador criminoso, em atitude suspeita, talvez tomando notas e fazendo croquis para futuro assalto (só mesmo em histórias...), que retornaria posteriormente com seus asseclas e suas armas.
 O astuto vigilante alerta a gerência e o quiproquó rapidamente se espalha pelos funcionários. De repente o clima da pacata agência fica tenso e carregado, onde apenas o poeta continua, tranquilo, dando asas à sua imaginação...
Pensei, então: por que não escrever a história ali mesmo? Estava sentado confortavelmente. Havia tempo, o frango poderia esperar um pouco. E havia o enredo, que era o principal. Não hesitei. Tirei do bolso o pequeno bloco de notas que sempre levo comigo e acomodei-me. Na verdade não seria nada demais se eu colocasse um pouco da minha própria história na vida real.
Comecei a transpor a aventura do poeta para o papel tão empolgado, que o texto vinha-me aos borbotões. Rapidamente enchi algumas folhas do pequeno bloco. Mas, a certa altura, dei-me conta de que... não tinha pensado em um final para a história. Reli-a, uma, duas vezes. De nada adiantou. Era uma boa idéia, mas... e depois ? Todos, na narrativa, já estavam atacados de sinistrose da violência, menos o poeta. E o fecho da trama não vinha, estava difícil.
Foi nesse instante que vi o segurança aproximar-se.
- Com licença, o gerente quer falar um instante com o senhor.
- Comigo ?
Fui ter com ele, perguntando-me o que poderia querer comigo, pois apesar de ir sempre àquela agência, eu nem o conhecia.
O que eu nunca poderia imaginar é que a minha história estivesse ganhando corpo...
Visivelmente nervoso, o rapaz dirigiu-se a mim:
- O que o senhor deseja ?
O guarda, ao seu lado, mantinha discretamente a mão no coldre. Quem menos entendia o que estava se passando era eu, que pude perceber que era alvo de olhares pouco discretos dos funcionários.
- Eu ? Nada. Aproveito apenas um pouco do ar condicionado.
- Mas o senhor tomava notas, enquanto examinava toda a agência.
Comecei a entender. A minha história estava se repetindo - ao vivo. A imaginação do segurança, talvez mais fértil que a minha, deu vida às minhas mal traçadas linhas... Resolvi então levar avante aquelas suspeitas, provocando um diálogo subjetivo e inquietante. Quem sabe não estaria ali o final que procurava?
Fingi um sorriso meio amarelo.
- Sim...Notas particulares...
- Poderia mostrá-las ?
- Sim, poderia. Mas não quero. Você duvida da minha palavra, e isso não é bom. São apontamentos que só a mim interessam e não lhe dizem respeito. Além disso, aquelas poltronas não estão ali para enfeite, creio eu. Eu estava apenas sentado em uma delas, para fugir um pouco do calor de lá de fora.
Eu me fingia extremamente ofendido. Blefava, mas não mentia. Às vezes nem é necessário mentir para se propagar uma idéia falsa. Os ouvidos alheios encarregam-se de adulterá-las. Continuei, falando em voz baixa e sorrindo, simulando para a assustada platéia de funcionários uma conversa aparentemente suspeita.
- Sou cliente deste banco talvez há mais tempo do que você tenha de idade. O número da minha conta é 1113. Não quer confirmar ?
Um funcionário que estava mais perto afastou-se sorrateiramente e retornou pouco depois com meu dossiê na mão, que depositou na mesa do seu chefe.
Eu exultava. Respondia as perguntas que me eram feitas com evasivas e fingida arrogância, sem nenhuma vontade de esclarecer a minha visita ao banco. Não era acintoso, no entanto. A tensão era aumentada pelo medo contagiante, pois já pressupunham até que eu não estivesse sozinho. Eu havia criado um clima insuportável, em cima de suspeitas sem nenhum conteúdo, se bem examinadas. O segurança procurava em torno os meus possíveis cúmplices e os funcionários começavam a participar da cena em silêncio com o cuidado, nem sempre conseguindo, de não transmitir aos poucos clientes a sua inquietação.
Em dado momento, vi que entrava mais um cliente, um velho conhecido meu, vizinho de rua, talvez como eu à cata apenas de uma temperatura mais amena, sem suspeitar que o ambiente já fervia, apesar do forte ar condicionado. Aliás, não era só o ar que estava condicionado. Estavam todos, isso sim, na absurda idéia do assalto que eu deveria estar planejando. Acenei para ele, que se aproximou, alheio, evidentemente, a tudo o que se passava. Brincou, ao me ver conversando com o gerente:
- Então, cadê o empréstimo ?
Respondi-lhe no mesmo tom, sorrindo :
- Ainda não... - E olhando para o gerente - Está difícil...
O que aconteceu, então, quase fez com que me arrepender de ter começado aquela brincadeira. O meu vizinho, enquanto se aproximava um pouco mais, enfiou a mão no bolso interno do paletó, como para tirar algo, e disse:
- Pode deixar. Eu lhe ajudo, com o meu “prestí-gio”...
Quase não pôde terminar a frase. O guarda voou-lhe em cima, derrubando-o no chão, descarregando todo o seu susto no pobre homem - o meu cúmplice. Depois, já empunhando sua arma, mantinha-a apontada para ele.
Levantei-me de um salto para acudir o meu amigo. Mas o apavorado segurança assustou-se com o meu gesto rápido, e voltando a arma em minha direção, puxou o gatilho.
A bala atingiu-me de raspão, mas estourou o pobre do frango, que morreu pela segunda vez, tingindo-me espetacularmente de vermelho com o ingrediente do que seria um saboroso molho pardo. Eu parecia estar esvaindo-me em sangue, diante de todos. Meu amigo levantou-se, exibindo nervosamente ao gerente, de braço estendido, a caneta que havia tirado do bolso... Este, estava mudo de susto. O guarda, tremendo como uma vara verde, ainda segurava perigosamente a sua arma. Todo o banco estava mergulhado em um silêncio sepulcral, e ainda ecoava no ar o estalo seco do estampido.
- Me dá essa arma, seu cretino ! 
O homem da lei estendeu-me o revólver com os olhos fixos em meu ferimento, que havia tingido toda a roupa de vermelho. Em seguida, estatelou-se a meus pés. Ninguém deu atenção ao seu desfalecimento. Todos olhavam para mim, a estrela da festa.
Consegui disfarçar a dor do meu arranhão, transformado, graças ao frango defunto, em grave ferimento que ninguém conseguia localizar, e assumi heroicamente a situação. Ninguém mais se lembrava do assalto.
Sisudo, com ares de vítima grave, encarei o atordoado bancário :
- Ainda quer ver aquelas notas ?
Ele abaixou a cabeça, abanando-a numa derrotada negativa.
Eu estava feliz. Que final havia conseguido para a minha história !
Tirei então um lenço do bolso, limpei o rosto e os braços em gestos lentos e estudados, e encaminhei-me para a saída, teatralmente amparado pelo meu cúmplice, deixando no ar a frase definitiva :
- Era apenas um poema...

segunda-feira, 14 de março de 2011

A CASA DA RUA HERMENGARDA



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- Mudei-me, sim, porque ela quis assim.
- Ela, quem? A Renata? Mas ela gostava tanto da casa...
- A Renata, não. A casa. Já nos mudamos há muito tempo.
- A casa, Geraldo? Como assim?
- Meu caro, “é uma longa história”, como se costuma dizer... Um tanto inverossímil, talvez, mas foi o que aconteceu. A casa obrigou-nos à mudança. Mas felizmente agora está tudo bem melhor, embora a um custo muito alto.
- O que você fez com ela? Vendeu-a?
- Ela não existe mais. Mantive-a de pé enquanto foi possível. Não sei bem para que. Talvez apenas para testemunhar, com  prazer, a sua decadência, a sua morte.
- Você agora deixou-me curioso. Esta história  guarda algum segredo ?
- Absolutamente. Se tiver paciência para ouvi-la...
- Claro que tenho.

- Lembro-me da primeira vez que a vi, imponente, soberba, edificada sobre uma pequena elevação do terreno, como a dominar todas as outras casas em torno.
Parei o carro rente ao meio-fio. Não havia nas ruas o congestionamento constante trazido pelo “progresso”, que as sufoca e não nos deixa perceber nada além do que está à frente do parabrisa. Parei o carro, dizia, do lado oposto a ela, e pus-me a examiná-la.
Dois andares. Toda branca, fachada com sacadas trabalhadas em arabescos gregos e ramos de flores delicadamente pintados em diversas cores e entrelaçados, envolvendo as janelas, feitas em esmerado trabalho de marcenaria. A entrada, pelo lado, debaixo de uma espaçosa varanda coberta por um delicado telhado de ferro e vidro, como mandava a moda de então. “Kitsch” e de gosto duvidoso, como se diria hoje em dia, mas destacado e marcante, na sua época. Uma beleza.
No portão, uma tabuleta : "À venda".
Logo me encantei por ela. Agradava-me o local, a vizinhança, o comércio bom e suficientemente distante para que o local conservasse a quietude do ambiente residencial.
Por que estaria à venda? Percebia-se que havia sido construída com o carinho de quem pretendia que fosse o seu abrigo definitivo. Estava vazia, e dos corretores, que procurei, a informação que obtive não me convenceu: mudaram-se, os donos, porque desgostaram-se do local...
Somente mais tarde vim a saber o verdadeiro motivo. Mas então já não havia mais nada a fazer.
- Você está fazendo suspense...
- Não, não estou, e você irá ver porque me expressei assim.
Ali mesmo comecei a imaginar a reação de Renata, quando a visse. Por certo seria amor à primeira vista, como o que senti. E não estava errado.
Quando comentei com ela sobre a casa, apesar do adiantado de sua gravidez, fez-me voltar à rua Hermengarda ainda naquela noite, excitada com o meu entusiasmo, com o qual compartilhou assim que viu a mansão.
Pude então apreciar o local de outro ângulo, agora sob a calma noturna. Era ainda mais agradável.
Daquela visita noturna a fecharmos o negócio, foi um pulo. A mudança também foi logo decidida e até bastante facilitada, pois resolvemos comprar todo o mobiliário em estilo art nouveau, dominante, na época. Queríamos que o interior refletisse a beleza exterior do nosso novo lar.
Mal havíamos nos instalado e o futuro primogênito começou a dar sinais de também querer participar da nossa alegria. Com efeito, duas semanas depois as “primogênitas” nasceram: Priscila e Letícia vieram completar a nossa felicidade.
No princípio, tudo foi maravilhoso. As meninas cresciam cercadas de amor e carinho por mim e por Renata, que parecíamos dois adolescentes apaixonados. Nossa vida era tranquila e sem maiores problemas além daqueles ditos normais que um casal enfrenta, ao adoçar as inevitáveis arestas que um relacionamento a dois traz às suas vidas.
Priscila e Letícia, agora já na escola, todos os dias após as aulas e feitos os deveres de casa, gostavam de brincar nos jardins, de lidar com as plantas e de vê-las brotarem das sementes que deitavam à terra. A jardinagem era tarefa que adoravam.
Um dia, pediram-me que eu levasse duas mudas de alguma árvore que “crescesse bastante”, segundo palavras delas, pois pretendiam plantá-las uma de cada lado da casa, para que no futuro emoldurassem a bela fachada. Levei duas mudas de fícus, colocadas por elas mesmas nos locais previamente escolhidos. Deram seus próprios nomes às futuras árvores, que cresceram sadias e viçosas. Quando Priscila e Letícia completaram dez anos, as suas xarás já ultrapassavam em muito suas alturas.
Mas nem tudo era alegria. Eu sentia que havia algo naquela casa que às vezes me causava profundo mal estar. Parecia-me estar sendo constantemente observado e vigiado, embora nunca nada de anormal eu tenha presenciado. Comentei com Renata essa estranha sensação, e para surpresa minha ela disse que também sentira, por mais de uma vez, que alguém estava seguindo os seus passos. Não eram fantasmas. Não havia cortinas esvoaçantes, lustres que se balançavam ou arrastar de correntes. Era mais sutil. Nada havia de anormal, à exceção daquela sensação de constante e desagradável vigília.
Parecia-nos que a casa nos observava, que éramos invasores nas suas entranhas. Sentíamos que não éramos benquistos por ela, que ela apenas tolerava conceder-nos abrigo. Nós a mantínhamos cuidada, limpa e frequentemente pintada com esmero, mas nada do que fazíamos conseguia... agradá-la, vamos dizer assim.
Começaram, então, a acontecer conosco pequenos acidentes. Encanamentos novos apareciam com vazamentos, telhas quebradas deixavam que a água da chuva danificasse o reboco e a pintura, curtos-circuitos queimavam a fiação. Eram fatos inexplicáveis, em uma obra feita com materiais nobres e até mesmo com algum luxo.
Era ela mesma, a casa... Estava sempre voltada contra nós. Não éramos, para ela, seus donos. Ela, sim, queria dominar-nos, queria ser a nossa proprietária.
Mas apesar disso a vida continuava, dentro do possível, alegre e feliz, pois não deixávamos que aquela sensação tomasse conta de nós, e tínhamos o cuidado de nada passar para as duas meninas.
Elas estavam cada vez mais contentes com a jardinagem e o desenvolvimento das suas árvores. “Priscila” e “Letícia”, agora já bastante crescidas e com um porte altivo, faziam jus a seus nomes. Eram tão lindas quanto as duas crianças.
Jamais houve arrependimento de nossa parte por termos feito a compra, pois deixávamos em segundo plano os incômodos que vinham acontecendo. Já estávamos há quinze anos na rua Hermengarda, e embora agora o trânsito fosse bem mais intenso e um tanto barulhento, não nos incomodava. Temos a tendência de acomodarmo-nos às coisas à nossa volta, quando elas vão piorando lentamente.
Eu sentia que a nossa atitude, sempre positiva, irritava a nossa senhoria. Parecia-nos que nada a agradaria mais do que ver-nos longe dali.
Priscila e Letícia eram agora duas mocinhas encantadoras, prestes a comemorar os seus quinze anos com uma bela festa, que estava sendo preparada em seus mínimos detalhes, por elas e por Renata, já há muito tempo. Seria nos amplos jardins em volta da residência, que se prestavam muito bem para essas ocasiões. Espalhar-se-iam mesas pelo gramado e um tablado armado acolheria os dançarinos e a orquestra.
Foram ultimados os preparativos, a contratação do buffet e da orquestra e enviados os convites.
Tudo pronto, chegou o tão esperado dia.
Os jardins e o interior da casa estavam já repletos de convidados, e eu e Renata serpenteávamos entre eles, como bons anfitriões. Esperávamos todos pela chegada das duas aniversariantes, que não tardariam a descer.
Foi quando tudo aconteceu.
Do alto da escada, lindas e sorridentes, as duas meninas recebiam os aplausos dos convidados. Dois botões em flor, prestes a desabrochar para a vida, com a alegria juvenil estampada nas faces. Jamais poderei esquecer aquele quadro.
Então, quando começaram a descer os primeiros degraus, Priscila, que vinha um pouco atrás, desequilibrou-se inexplicavelmente, e rolou pelos degraus abaixo, trazendo consigo a irmã, na violenta queda. E o que poderia ter sido um acidente talvez sem maiores consequências, transformou-se em uma tragédia, inesperada e sem sentido.
Eu não podia acreditar no que estava se passando. As minhas duas filhas, em dois centros cirúrgicos, ao mesmo tempo, sendo submetidas a delicadas intervenções onde as esperanças de êxito eram mínimas. Saídas do esplendor de uma festa, debutantes em toda uma vida que tinham pela frente, jaziam agora ali inertes, entregues a mãos que certamente mudariam o seu destino.
Eu andava de um para outro lado, na pequena sala de espera do hospital, procurando compreender por que tudo aquilo havia acontecido. Renata permanecia sentada, de cabeça baixa, apertando nervosamente nas mãos os dois vestidinhos que haviam enfeitado tanto as me-ninas, há apenas pouco mais de uma hora. Estávamos mudos, perplexos pelo fatídico desenrolar dos fatos.
Por fim, ambos os médicos, quase ao mesmo tempo nos deram a terrível notícia - se resistissem ao pós-operatório, elas estariam condenadas a cadeiras de rodas.
A nossa vida passou a girar em torno das meninas. Priscila e Letícia não sofreram danos apenas nos movimentos, mas também na fala. As suas mentes não haviam sido lesionadas, por isso era triste vê-las tentando comunicar-se conosco, e nem sempre conseguindo o seu intento. Lágrimas lhes vinham às faces, quando não conseguíamos compreender o que queriam nos transmitir.
Continuamos morando na rua Hermengarda, na casa que tornou-se lúgubre e sombria. Para nós, seus indesejáveis inquilinos.
Um dia sentei-me num degrau no alto da escada, da mesma escada causadora da tragédia. Examinei-a bem. Não havia nada que pudesse vir a provocar um acidente - um piso escorregadio, uma taboa solta, coisas assim. Eram degraus comuns, centenas de vezes utilizados por todos nós, sem que nenhum perigo fosse detectado. Eu tinha a impressão de que, naquele triste dia, as meninas haviam sido empurradas escada abaixo por alguém... inexistente. Enquanto dava tratos à bola, percebi que, curiosamente, a sensação de estarmos sendo vigiados arrefecera, e confirmei o que já havia imaginado - a tristeza estava em nós, não na casa. Ao contrário, eu sentia que ela agora estava alegre, morbidamente alegre com a tragédia que se abateu sobre nós. Pensava, talvez: “Agora falta pouco para que me deixem em paz...”
Ao mesmo tempo que me vinham estes pensamentos, eu os repelia, logicamente, por absurdos. Mas eles retornavam. A casa estava pacientemente esperando que mudássemos dali para que ela ficasse em paz.
Absorto, deixei escapar em voz baixa:
- Que loucura...  
- O que foi, meu bem?
Eu não tinha visto Renata aproximar-se.
- Você está ai, querida? Não a tinha visto...
- De que você falava?
- Ora... nem eu mesmo sei... Ando pensando umas bobagens... Eu acho que esta maldita casa quer que a gente se mude.
Renata não escondeu o seu espanto:
- A casa quer o quê?
- Eu não disse que era bobagem? Renata, há mais de quinze anos sentimos essas estranhas sensações de que a casa está contra nós. Quanta coisa nos aconteceu aqui, sem explicações! Sempre cuidamos dela tão bem, com tanto carinho, sempre foi tão linda e elogiada por quem nos visitasse... Por que tantos estragos, tantos vazamentos, curtos-circuitos e tudo o mais? Agora, essa tragédia... Ela está forçando-nos a mudar para outra casa.
 - Geraldo... Você está exagerando...
- Ela está forçando-nos a uma mudança - repeti.
- Será o fantasma do antigo dono, talvez... - Renata sorriu.
- Eu não disse que são fantasmas. É a casa, é ela que não nos quer aqui. Lembra-se que os médicos disseram que com muita dedicação e muita fisioterapia talvez conseguíssemos substancial melhora nas meninas? Pois bem, mais do que temos feito é impossível, e nada conseguimos até hoje.
- É verdade.
- Vamos nos mudar, Renata. Eu entrego os pontos.
- Mas que absurdo, Geraldo ! Vamos nos mudar porque a casa quer assim ?
- Vamos então conversar com Priscila e Letícia. Elas também já não estão gostando desse mausoléu.
- Geraldo ! Não fale assim. Mausoléu é para os mortos...
- E é o que esta casa vai ser, se continuarmos aqui. Essa casa vai acabar conosco.
Expus minha idéia às meninas, ainda que contra a vontade de Renata. Elas não se assustaram, ao contrário, apoiaram-me sem restrições. Apenas, Letícia recomendou que nos desdobrássemos em cuidados com as suas árvores.
- Reguem... as... árvores... Sempre, sempre...
Não era um pedido difícil de ser atendido, este que com extrema dificuldade ela nos fazia. As duas frondosas árvores já não necessitavam de cuidados, mas eu não me furtaria de atender tão inocente solicitação. Não iria jamais contrariar minha filha.
- Converse... com... elas... - Priscila completou.
- Conversar o que, minha filha ?
- Diga-lhes... que nós... as amamos muito...
Eu não imaginava quão importantes eram aqueles majestosos fícus para as duas.
Quando viu a reação das filhas, Renata convenceu-se. A mudança seria melhor para todos, enfim. Mais ainda para as duas, pois talvez estivessem sentindo-se presas àquele lugar que tanto mal lhes causara.
Enfim, mudamo-nos. Outra casa - esta sim - clara, bastante ventilada e alegre. De um só pavimento, embora espaçosa, o que facilitaria a locomoção de Priscila e Letícia. Além disso, tinha uma boa piscina, onde as duas poderiam tratar-se mais facilmente pela hidroterapia, prática essencial para o seu tão desejado restabelecimento.
Continuei indo, em dias alternados, aguar as duas árvores. A princípio nada falava com elas, mas com o tempo percebi que comecei até a “dar-lhes notícias” das meninas. “Que coisa ridícula...”, pensei um dia. Mas ao mesmo tempo veio-me à lembrança o pedido de Patrícia, e envergonhei-me de ter pensado assim. Sorri e falei:
- Até depois de amanhã... Minhas filhas amam vocês duas...- e fui-me embora. Desse dia em diante convenci-me de que elas me escutavam...
Com a hidroterapia, as duas meninas começaram a ter visíveis melhoras. Alegrava-nos vê-las, a cada mês, a cada semana mesmo, conseguirem pequenos movimentos onde antes havia apenas membros inertes.
- Está vendo, Renata? Eu não disse que aquela casa era amaldiçoada?
- Francamente, Geraldo. Não foi a hidroterapia, então ?
- Bem, a hidroterapia ajudou bastante. Mas livrarmo-nos daquele mausoléu foi primordial...
- Lá vem você com a história do mausoléu. Tem ao menos regado as árvores, como Letícia lhe pediu? - e, marota: - E conversa com elas, também?
- Claro, dia sim, dia não. Não preciso mais regá-las, mas converso com elas... Não há possibilidade de esquecer-me, a casa está no meu caminho. Sabe? Está acontecendo uma coisa curiosa por lá...
- O que?
- Os galhos novos das duas árvores estão crescendo na direção da casa.  
- Como assim?
- Pois é, estão quase encostando nas paredes. Não crescem para o lado da rua. E as raízes estão à flor da terra, enormes, voltadas também para a fachada.
- Geraldo, você continua com essas idéias místicas...
Não eram “idéias místicas”. As raízes continuavam serpenteando em direção às paredes e à varanda lateral. Pequena rachadura já se insinuava sob a janela da sala.
Eu nada fiz para impedir, propositadamente.
Certo dia, conversando com um amigo meu, médico, que já não via há bastante tempo, ele comentou que havia uma equipe médica especializada, dentro da neurologia, em distúrbios da fala, que estava realizando verdadeiros milagres neste campo.
- Mas é na Suíça... - ele ponderou.
Imediatamente fiz contato telefônico com o cirurgião, expondo-lhe com minúcias o caso das minhas filhas. Ele deu-me esperanças, embora nada pudesse afirmar sem exames detalhados.
Não pensei duas vezes. Fomos, nós quatro, ao encontro do médico, e em pouco mais de uma semana estávamos em seu consultório. Foram feitos todos os exames, dezenas deles. A conclusão foi que havia, em ambas as meninas, grandes coágulos comprimindo a região do cérebro responsável pela fala. As cirurgias seriam possíveis, com alguma possibilidade de êxito e um longo período de restabelecimento, uma vez que somente após a certeza dos resultados elas estariam aptas a uma viagem de volta tão longa.
Foram mais de seis meses, entre as cirurgias e a recuperação. A operação havia sido um sucesso. Durante esse tempo, Priscila e Letícia recuperaram substancialmente a capacidade de falar. Continuaram, paralelamente, com o tratamento hidroterápico, e os movimentos a cada dia eram mais visíveis.
Quando voltamos, deixamos por lá as cadeiras de rodas.
As duas meninas não cabiam em si, de alegria. Dois anos haviam se passado desde a triste queda, e elas já se locomoviam com alguma desenvoltura, sendo necessário apenas o auxílio de bengalas.
Eu estava eufórico, Renata mais ainda.
- Renata, tudo está “caminhando” - sem trocadilho - tão bem... Desde que abandonamos a rua Hermengarda as coisas estão se desenrolando...
- É verdade. Estranha coincidência...
- Pode ser. Estou me lembrando que desde que voltamos ainda não fui conversar com “Priscila” e “Letícia”... Amanhã mesmo passo lá. Daqui a pou-co as duas xarás começam a me cobrar o cuidado com as suas arvores.
- Renata...
Eu estava pálido. Há pouco mais de meia hora havia saído, para meus afazeres, e voltava agora para casa, com visível mal estar.
- Que cara é essa, Gerald? O que houve?
- Você nem imagina! As árvores cresceram muito...
- E daí? Passamos tanto tempo fora... Quase um ano... E há quanto tempo você não vai lá?
- Não é só isso... As raízes estão levantando a casa. Há enormes rachaduras nas paredes... Os galhos penetraram pelas frestas das janelas, e agora, já grossos, começam a arrebentar o telhado... Quase não se vê mais a casa, da rua. As duas árvores, frondosas, a escondem...
- Meu Deus... Vamos lá, quero ver isso de perto...
Desde aquela manhã passei a ir todos os dias, sem falta, para ver que rumo tomavam tão insólitos acontecimentos. Eu precisava entrar no terreno, pois da rua viam-se apenas duas árvores frondosas, que encobriam completamente a construção. A cada vez que eu ia, o lento processo de crescimento das duas árvores parecia mais devastador. A marquise de vidro que cobria a varanda estava estilhaçada. As portas e janelas arrebentadas por grossos galhos que invadiam suas entranhas. O telhado desabara, vencido pelo furor de dezenas de braços gigantescos. Enormes rachaduras provocadas pelas raízes, que estouravam os pisos, completavam a visão dantesca.
Um dia, já quase chegando ao meu antigo lar, não me deixaram passar. A rua Hermengarda estava interditada. Segui a pé, e de longe avistei diversos carros da Defesa Civil e soldados e pessoas dentro de cordões de isolamento. Na rua, o povo, curioso, comprimia-se. Apressei o passo, o coração quase saindo-me pela boca. Dei-me a conhecer, às autoridades, e antes que eu entrasse no terreno esclareceram-me a origem de tanto tumulto.
A imponente construção havia desabado, fragorosamente. Nada mais restava, além de um enorme monturo, misturado com os galhos das duas árvores, que continuavam eretas, imponentes.
“Priscila” e “Letícia” haviam feito justiça. 





terça-feira, 1 de março de 2011

A JANELA

Direitos autorais reservados




 - Está estranho, o Edu. De ontem para hoje, está radicalmente mudado. Como é que pode, Andrea?
- Mudado, em que sentido? Você esteve com ele ontem, Vinícius...
- Pois é. Mas está com um comportamento completamente diferente. Você se lembra das histórias que lhe contei, que ele às vezes vem tendo visões estranhas quando chega em uma das janelas da casa?
- Claro. Não é difícil entender que, quem more no largo do Boticário e tenha uma casa que é, em tudo, uma residência do início do século dezenove, inclusive nos costumes...
- ...Comece a ver cenas típicas daquela época. Não foi isso que ele já disse, diversas vezes?
- Foi. A mim mesmo ele relatou algumas dessas cenas.
- E então? Hoje, encontrei-me com ele, e no meio da conversa ele disse-me que nunca viu cena nenhuma, que não entendia por que eu estava inventando aquilo.
- O que? Nunca viu?
- E mais: disse-me, até sorrindo, que eu é que estava com um comportamento estranho, falando aquelas coisas.
- E a Célia?
- A Célia parece-me que pirou junto com ele, porque concordava com tudo o que ele dizia.
- Ela também? E a Rosa?
- A Rosa, você sabe, já é da família, de tanto tempo que está com eles. Concordava, com seu silêncio e seu sorriso de Mona Lisa.
Andréa não conteve uma gargalhada.
- O que foi?
- Ora, Vinícius, você tem cada uma... Imaginei logo Da Vinci pintando a Rosa, pretinha daquele jeito, na pose de Mona Lisa...
- Mas o sorriso é igual...



-Aconteceu ontem de manhã, Vinícius. Quando abri a janela, lá estava. Era como que um footing matutino, onde não faltavam as sinhazinhas, acompanhadas de seus pais, as mucamas, os escravos na fonte, abastecendo suas moringas, tudo, tudo tão verdadeiro, tão vivo...
- E então?
- Fechei a janela assustado... Quando tornei a abri-la, quase em frente à minha casa estava estacionado um carro zerinho, reluzente...
- Com certeza você teve alguma indisposição, Edu. Um mal estar, às vezes, desencadeia estas situações que não se explicam.
- Deve ter sido uma experiência fascinante.
- E foi mesmo, Andréa. Inesquecível. Mas um mal estar não provocaria nada a esse ponto. Além do que, eu estava me sentindo muito bem. Vocês sabem, eu não bebo, alimento-me frugalmente, e havia acordado após uma noite de sono tranquilo... E acordara mesmo, nem estava sonhando.
- Eu sei. Mas o quarto escuro, a manhã de sol muito claro, tudo deve ter contribuído. Quando você abriu subitamente a janela, a claridade excessiva feriu seus olhos. Isso se chama “deslumbramento”, creio eu, em medicina. O deslumbramento provoca às vezes visões que parecem reais.
- Olhe, fiquei mesmo deslumbrado, quando vi o pacato largo do Boticário retornar ao que era no início do século dezenove, com toda aquela gente passeando, os escravos na sua lida diária, tal como num quadro de Rugendas. Fiquei, sim, deslumbrado e assustado.
- Assustado, por que? Foi um episódio passageiro, eu garanto. Não deverá se repetir.
- Assustado, sim, porque ao mesmo tempo que foi deslumbrante, quando vi toda aquela gente lá em baixo veio-me um sentimento inexplicável de... culpa! Por que, não sei. Ainda assim, quisera eu que a cena se repetisse! Você já pensou? Eu desceria correndo as escadas...
- Culpa? Não entendo. Meu caro, quando você tomou posse desse sobrado, eu tinha quase certeza de que alguma coisa desse tipo iria acontecer. Olhe só como ficou esta casa: os móveis, os lustres, a pintura das paredes, tudo está idêntico aos mil e oitocentos e pouco. Você fez questão de voltar ao passado, com toda a fidelidade. Só faltava o exterior. Agora, pelo que vejo, nem isso... Por que, a culpa? Pela restauração que você fez?
- Não, não. Foi a cena, mesmo. Algo com os escravos, não sei. Eu disse que desceria as escadas correndo, mas sei que não me sentiria bem naquele ambiente. Parece-me que eu iria sentir-me um outro homem.
- E aqui dentro? Você sente culpa de alguma coisa? Se tudo é tão fiel...
- Nem tanta é assim a fidelidade. Afinal nós estamos no coração de Laranjeiras, em pleno Rio de Janeiro. E no século vinte e um. Tenho água quente encanada, luz elétrica, uma televisão de plasma...
- ...Que ninguém é de ferro... - era Andréa que aparteava - Mas o fogão não é a lenha? Diga-me: como conseguiu convencer a Rosa a cozinhar naquele belo fogão que vi? E a lenha, onde arranja?...
- Não foi difícil. A Rosa faz parte da família desde que eu era garoto. Foi minha ama de leite. Já cozinhava a lenha, não foi novidade. Ela adorou quando disse que a queria comigo. Gosta daqui, desse ambiente. Quanto à lenha, preciso de muito pouca. Trago uns “gravetos” lá do sítio, que duram a semana inteira. Mas... tenho o gás, para as emergências.
- Não vi...
- É claro... Está bem camuflado, tanto quanto a tv, as lâmpadas, o telefone... Para dar mais autenticidade.
- Vocês dois estão de parabéns. Está tudo perfeito. A casa “retornou” ao século dezenove...
Célia, até então calada, exclamou:
- Pois é. Agora, isto...
Vinícius tentou uma explicação nada convincente:
- É, Eduardo. Você mexeu com a sua mente. Do jeito como você “viaja”, foi fácil criar um quadro vivo de Rugendas, como você mesmo disse, para tornar ainda mais perfeita a sua imaginação. Afinal, o estado de conservação desse largo e de todas as casas em volta dele é impressionante.
- O largo e tudo o mais nele contido estão no livro do tombo da União.
- Eu sei. Mas, mais do que ninguém vocês levaram a sério esse tombamento. As casas dos seus vizinhos não têm um interior elaborado como a de vocês.
- Isso é verdade. Mas nada disso explica a minha visão. Quando eu abri a janela e fui à sacada, os passantes olhavam para cima, alguns sorriam e me cumprimentavam com um meneio de cabeça... Não só eu os via. Eles me viam, também...
- Você queria que eles estivessem lhe vendo.
- Ora, Vinícius, não é tão simples assim. Eu vi toda aquela gente, e fui visto por eles, tenho certeza.
- Esquece, cara. Foi agradável, apesar da sensação de culpa, não foi? Então? Fique com a lembrança. Não apure...

“Não apure”... Se era tão fácil para Vinícius, era impossível para Eduardo deixar o acontecimento de lado. A visão que teve do Brasil colônia, de sua sacada, havia sido como que o coroamento da minuciosa restauração a que se entregaram, ele e Célia, com dedicação e carinho, e que lhes tomara dois anos de trabalho. Mas... culpado de quê, estaria se sentindo? E a sensação de querer retornar, consertar alguma coisa que deixou pendente?

Edú havia recebido como herança, de seu pai, o imóvel do largo do Boticário, lugar onde nenhum dos proprietários das oito casas pensaria em vender suas preciosidades.
Depois das obras, da compra dos móveis - autênticos, peregrinados, um a um, em lojas de antiguidades - da decoração caprichada, resolveram logo mudar para lá e viver a vida colonial. Mas... com muito mais conforto do que seus antecessores.
Estavam realizados.
Agora, logo na primeira manhã na tão antiga quanto nova residência, é brindado com muito mais do que esperava: o ambiente havia criado vida, vida de verdade, ainda que tenha sido apenas por alguns poucos segundos, mágicos segundos que o transportaram pelo tempo a quase dois séculos passados.
Não conteve o susto, inevitável. Fechou violentamente a janela, deu três passos atrás e tropeçou, caindo sentado na cama. Ali ficou algum tempo, refazendo-se, e quando levantou-se, novamente abriu a janela de par a par, o pacato e sombreado largo reluzia, vazio, ao sol da manhã.
- Meu Deus, por que fechei a janela?...
Um carro, reluzente, estava estacionado no meio-fio em frente.
- Que heresia... - foi o que conseguiu resmungar, entre dentes - Ainda se fosse um cabriolet...
Voltou para o quarto, e ainda em pijamas, ganhou a cozinha.
- Bom dia, seu Edu. O café está quase pronto.
Talvez esperasse ver a Rosa com um vestido de algodão cru, alvo e quase arrastando no chão, contrastando com sua negritude, e um torso bem enrolado escondendo os cabelos, sorrindo com seus dentes muito brancos.
Mas, não; sorrindo, até que estava, que ela sorria sempre. Mas seu devaneio terminara com a inusitada cena barroca.
- Bom dia, Rosa. Onde está a Célia? Acho que preciso mesmo de um café bem forte. Não estou muito legal.
- Por que, seu Eduardo? Ressaca não é, o senhor não bebe... D. Célia já saiu, foi fazer as compras.
- Antes fosse ressaca, Rosa. Ressaca se cura.
- “Qué que” aconteceu? O senhor está branco...
- Deixa pra lá, Rosa. Não foi nada. O Lindolfo me ligou?
- Quem? Quem é Lindolfo?
Edú consertou, sem saber porque havia mencionado aquele nome:
- Não... O meu amigo, Vinícius. Não sei de onde tirei esse nome, Lindolfo...
- Ah, o Vinícius. Não, senhor. Mas são sete e meia, ainda...
- É verdade. Eu é que estou ansioso para mostrar-lhe a nossa nova residência.
- Quanta bondade... “nossa”... Nossa por que?
- Rosa, Rosa... Você é da família... O que é meu e de Célia,, é seu...
Rosa sentiu-se enrubescer, mas Eduardo jamais notaria. Ela sabia que era sincero o que ele havia dito. Ele viveu sozinho, na companhia dela, durante muito tempo antes de conhecer Célia, e não tinha então mais ninguém além da sua mãe preta. Mas o seu pensamento o traia, às vezes. Quando olhava para ela, imaginava-a escrava, ainda. Por que aquilo? Era forte a sensação, que intimamente a combatia com veemência. Se seu sentimento por Rosa era quase filial...
- Quero que ele venha aqui hoje com a Andrea. Você viu que nesses dois anos não quisemos que nenhum dos nossos amigos visse a obra de reforma da casa? Acho que a surpresa deles vai ser grande.

-Pois é, Vinícius. É fácil você me aconselhar com um “não apure”. Seria o que você faria, talvez?
- Não, meu caro, certamente não... Mas, o que fazer?, se a situação foi-se, como veio. O que aconteceu foi um episódio fortuito. Não deve se repetir.
- É pena. Eu daria tudo para viver naquela época, apesar das mazelas que existiam.
- Mas você não disse que não se sentiu bem, ao ver a cena?
- Ainda assim.
- Os trabalhos de Debret e Rugendas são apenas relatórios artísticos. As atrocidades cometidas não cabiam em folhas de “canson”.
- Alguma coisa me atrai para aqueles tempos. Às vezes sinto que não é nem algo bom, ao contrário, angustia-me um pouco.
Célia interrompeu-o :
- Sabe, Vinícius? É curioso, acontece o mesmo comigo. A impressão que tenho é que fiquei - ou ficamos - “devendo” alguma coisa, naqueles tempos tão remotos.
- Devendo, como?
- Não sei... Às vezes acho que eu e Edu partimos antes de pormos os pingos nos “is”...
- Ora, nós todos podemos ter vivido na colônia. E os pingos nos “is” têm que ser colocados agora, hoje.
- Eu sei... É apenas uma sensação estranha, que acaba por nos dar essa vontade de viver por lá, como se pudéssemos consertar algo que ficou pendente.
- Isso está ficando muito complicado. O melhor é fazer o que eu disse: não apurem... Deixem o barco correr... Não vai haver mais cenas do Brasil Colônia, vocês vão ver. Foi um deslumbramento...
- Mesmo porque nada se pode fazer... 
Célia estava conformada.
- É verdade. A minha janela tentou encenar-me uma novela de época, mas eu desliguei a tevê...   

Mas... a “novela” não parou por ali. As cenas repetiram-se, sim. Muitas vezes. A intervalos cada vez mais curtos. Porém, mesmo que nesses momentos Edu mantivesse a janela aberta, elas se desvaneciam lentamente, até a praça voltar ao seu aspecto normal.
Ele já as aguardava com ansiedade, a cada dia, a cada noite que chegava perto da janela. Quando a abria e via apenas o tranqüilo e pacato largo de todos os dias, ficava decepcionado :
- Meu Deus, onde está o meu largo?  
Edu resolveu não comentar nada mais com seu amigo. Não adiantaria, ele continuaria invocando a forte claridade da manhã. Só que agora os “deslumbramentos” ocorriam também à tardinha ou à noite, na penumbra do mal iluminado largo do Boticário dos mil oitocentos e pouco. Se tomasse conhecimento, o incrédulo Vinícius haveria de continuar arranjando explicações, a seu modo, para os estranhos fenômenos.
Uma noite Célia estava com ele no quarto, quando mais uma vez o largo iluminou-se ante seus olhos.
- Célia ! Rápido, venha até a janela !
Ela juntou-se ao marido :
- Meu Deus, Edu ! O que é isso? Eu também estou vendo !
- Diga-me, Célia ! O que você está vendo?! Não sou apenas eu que vejo, então?
- Não, Edu ! Lá estão todos, olhando para mim, sorrindo, olhe, aquele senhor acena para nós ! Não feche a janela, Edu, vamos descer !
Correram, os dois, tropeçando nos móveis, atropelando-se escada abaixo, e ganharam a porta da rua. Abriram-na de par em par.
 Mas não havia ninguém no largo. A lua cheia iluminava-o mais do que os lampiões, embora adaptados para luz elétrica.
- Você viu, Célia, você também viu ! A coisa não é assim tão simples... E Vinícius aconselhando-me com o “não apure”... Eu sabia, eu sabia que havia algo...
- Que coisa maravilhosa, Edu !
Porém, desse dia em diante nada mais aconteceu. Mas de uma coisa tinham agora certeza : não eram “deslumbramentos”... Resolveram, então, não mais comentar com os amigos os insólitos acontecimentos. De nada adiantaria.
A cada dia, a cada mês que se passava sentiam-se mais e mais integrados à vida colonial que eles mesmos criaram. Dentro de casa, eram verdadeiros cortesãos, esquecidos do gás encanado, da televisão que permanecia muda e da água que vinha das torneiras. Às vezes, abdicavam até da luz elétrica em favor dos lampiões a querosene espalhados pela casa. Estranha e curiosa vida, que apenas se modificava quando ganhavam a rua, onde, obviamente, tudo pertencia ao século vinte e um.
Uma noite, porém, estavam curtindo um desses devaneios vestidos a caráter, como gostavam de estar, em seu faz-de-conta. Já quase esquecidos das cenas que a janela esporadicamente lhes proporcionava, foram até ela, e mais uma vez abriram-na de par a par.
Viram, até sem surpresa, a cena tão conhecida se repetir. Debruçaram-se na sacada, para melhor apreciar o quadro vivo de Rugendas...
Foi quando um jovem casal que passava em frente à janela olhou para cima e sorriu para eles. O rapaz exclamou:
- Então, Eduardo, vocês não vão descer?
Ele acenou para os dois, respondendo:
- Num momento, estamos acabando de nos aprontar.
Fechou a janela, cedeu o braço à Célia, que aceitou a gentileza, sorrindo. Juntos desceram as escadas e ganharam a rua.
O século vinte e um havia ficado definitivamente para trás.



-Já estávamos sentindo falta da presença de vocês. São tão agradáveis os nossos passeios noturnos... Ainda mais agora, que tão melhorada está a iluminação, com o gás nos lampiões.
- Não deixaríamos de vir, mas você sabe como são as damas. Esta aqui leva horas diante do toucador, a ajeitar as madeixas... Eu há muito estou pronto.
- Isto é verdade, Célia?
- Meia verdade... O meu senhor aqui também gosta de enfeitar-se.
Lindolfo e Palmira eram seus vizinhos no largo. Vizinhos também em suas fazendas de café, para onde, juntos, iam cuidar do gado e das plantações. Na cidade, continuavam o bom relacionamento que tinham no campo.
Em um canto da praça, um grupo de escravos observava, em silêncio, a alegria de algumas crianças brincando com uma bola.
- De quem são esses escravos, Lindolfo? O que fazem aqui, a esta hora?
- São meus, Eduardo. Pedem, vez por outra, para apreciar o movimento. Não posso recusar.
- Contanto que fiquem quietos...
- Mas por que não ficariam? Você precisa ser mais tolerante, meu compadre.
- Eles têm suas reuniões, suas festas. Nós não participamos delas. Cada um no seu lugar, não creio que seja intolerância.
- Eles sempre nos convidam. Já fui a várias.
- Pois eu jamais vou querer misturar-me à negrada. Ora... convenhamos, Lindolfo.
Célia reforçou as opiniões do marido:
- Por mim, só quero ao meu lado minha mucama, ela me é muito útil. Não gosto de intrometimentos.
Eduardo era conhecido na Corte por suas maneiras ríspidas no tratamento com os escravos. Era severo aos menores erros de suas peças, como chamava seus trabalhadores, e não hesitava em castigá-los, quando os julgava merecedores. Célia, talvez por influência de seu marido, seguia os seus passos.
Lindolfo calou-se. Não eram novas para ele as opiniões do amigo, que lhe causavam profunda tristeza. Exceto pelo tratamento dado aos seus escravos - o que já era suficiente para traçar-lhe a falha de caráter - mostrava-se sempre bom e fiel amigo, pronto para ajudar a todos em qualquer eventualidade. Gostava de Eduardo.
Resolveu não mais tocar no assunto. De nada adiantaria. Era preferível aproveitar o momento de confraternização. Voltou os olhos para seus escravos. Eram nove ou dez, sentados na mureta que circundava parte do largo, que riam, observando - de longe - as crianças, os sinhozinhos, como as chamavam.
Invadiu-lhe um sentimento de tristeza incontrolável. Meu Deus, eram pessoas iguais a ele, a Eduardo, a Célia... que apenas pela cor da pele eram submissos às vontades de seus senhores. Não conseguiu conter-se. Chamou um outro escravo, que vendia espigas de milho cozido, e distribuiu-as entre os negros. Eduardo não se conteve, foi ao seu encontro.
- Que absurdo está fazendo, Lindolfo?
- Ora, Eduardo, que mal há nisso? São gente como nós...
Os negros, assustados e respeitosos, depuseram as espigas na amurada.
- Você não devia misturá-los conosco. Nem sei se são gente.
Lindolfo não respondeu, acabrunhado.  Baixou a cabeça e começou a riscar o chão com a bengala, enquanto “pensava alto”:
- Esses negros lembram-me os touros.
- Os touros? Que bobagem é essa?
- Como aqueles, se imaginassem a força que têm, não seriam tão submissos...
- Meu caro Lindolfo, deixe-se de fantasias. São, sim, toupeiras como os touros. Por isso não reagem.
- Não, Eduardo, como os animais, o que eles não têm é uma liderança. Deixe que esta apareça, um dia. - e, após breve pausa - Talvez não seja para nosso tempo. Ainda há muitos “Eduardos” por aqui.
- Vamos embora, nossas esposas nos esperam. Não vamos nos indispor por causa de um grupo de negros.
Lindolfo sorriu para o “grupo de negros”, que conti-nuava respeitosamente quieto:
- Peguem suas espigas. A praça é de todos...

No dia seguinte, Eduardo e Célia estavam na janela, observando os escravos que cruzavam o largo, em seus afazeres.
- Não gosto da maneira como Lindolfo trata seus negros. Não duvido que pelas costas eles tramem algo para prejudicá-lo.
- Não é o que dizem. Por que fariam isso, se ele parece ser muito benquisto na fazenda e todos trabalham satisfeitos?
- Satisfeitos e escravizados? Isso não existe. Língua do povo...
- Pode ser. Mas lá não há troncos nem gargalheiras. Se não há escravos fujões...
- Olhe, falamos nele, vem chegando.
Lindolfo aproximava-se, já de longe cumprimentando-os.
- Bom dia, Eduardo. Senhora...
Célia respondeu, convidando-o à sua casa.
- Suba, Lindolfo. O que o traz por aqui?
- Boas novas, meu amigo. Ao menos para os meus escravos.
- Para os escravos?
- Sim. Fiz algo que já deveria ter feito há muito tempo. Alforriei-os todos, esta manhã.
- Como? Enlouqueceu, Lindolfo?
- Por que acha que perdi o juízo? Não queira saber o que mais aconteceu.
- Ainda algo mais?
- Nenhum deles quis sair da minha fazenda. Preferem continuar trabalhando para mim, ganhando um soldo, não mais como escravos. São homens livres, agora. Mais de duzentos... Não é formidável?
Eduardo estava surpreso. Jamais faria algo semelhante, pensou.
- E o seu prejuízo? Quanto há de gastar para pagar toda essa gente?
- Ora, Eduardo, você tanto quanto eu sabe como os negros nos dão lucros. Há de sobra para todos. Para mim e para eles. Vejo que os chamou de gente... Já é alguma coisa...
- Olhe como fala: “para mim e para eles”... Já os nivela assim?
- São gente, meu caro. Como você e como eu...
- Não como eu.
De repente, um escravo irrompe na sala, esbaforido cortando a conversa, vindo da cozinha.
- Sinhô, o capitão Estevão está chamando o patrão na fazenda, disse que tem pressa !
- Outra fuga, negro?
- Não sei, sinhô. Disse para o patrão ir a galope !
- Desculpe-me o transtorno, Lindolfo. Vou ter que deixá-lo. É só afastar-me da fazenda para que me mandem chamar. Não quer vir comigo?
- Vamos, sim. O que será de tão grave que aconteceu?
Seguiram os dois, preocupados. Após duas horas de viagem, encostavam na porteira, que o escravo apressou-se em abrir, guiando-os, em seguida, até onde estava o capitão de mato. Amarrado ao tronco, jazia um homem, aparentemente já morto. Ajoelhada a seus pés, uma negra apertava em seu colo uma criança recém nascida.
- Que significa isto?
- Bom dia, coronel Eduardo. Esses negros sem vergonha estão acabando com a minha paciência. Mas por que o senhor está aqui?
- Se mandou me chamar... E mais, com pressa...
Estêvão olhou para o escravo que trouxera os dois coronéis. Soltava chispas pelos olhos.
- Não ia lhe incomodar por uma bobagem, coronel. Esse negro chamou-o por sua própria conta. E, virando-se para o negro :
- Não perde por esperar...
- Mas o que houve, afinal?
- Esta mulher está espalhando para todos que eu abusei dela, e que o seu filho é meu, também. E o homem dela veio tomar satisfações comigo.
Eduardo voltou-se para o escravo caído ao lado do tronco.
- Que é que você diz, infeliz?
- Está morto, coronel. Comi ele de pancada.
- O que? Quem lhe autorizou a isso?
- A minha honra, coronel. E a criança foi junto.

 A negra irrompeu num pranto convulso, ao ouvir as palavras do capitão do mato. Voltou-se para Eduardo:
- Minha filha... Eu não espalhei nada... Ele é que vivia atrás de mim... Então, cravou o facão nela, na minha filhinha... matou meu homem... minha filha... acabou com tudo...
Eduardo estava lívido. Jamais autorizara nada além de algumas chicotadas como corrigenda, por maior que fosse a falta do escravo. Agora presenciava aquela tragédia, fruto dos desmandos de um capitão do mato assassino.
Lindolfo ajoelhou-se, com gestos de carinho para a pobre mulher. Percebeu, então, que ela também havia sido atingida pela arma do capataz.
- Mas... você está sangrando...
- Ai, sinhô... Deixe que eu morra em paz... Não tenho mais nada, não tenho mais ninguém...
Eduardo sacou do bacamarte e apontou-o para o capataz.
- Que é isso, coronel? A minha honra...
- Vou acabar com a sua honra, assassino !
Lindolfo interveio, baixando o braço do amigo :
- Não faça isso, Eduardo ! Basta de sangue !
- Corre, monstro assassino ! Corre, desaparece da minha vista, que eu nunca mais o veja nem nessa fazenda e nem nessa cidade ! Corre, desgraçado infeliz, antes que eu mude de idéia e lhe meta chumbo nas fuças !
Aparvalhado, o homem rodou nos calcanhares e desandou a correr. Mas não foi longe. A “negrada”, como dizia Eduardo, saiu-lhe atrás e fez sua própria justiça.
- Levem essa negra para a casa grande, rápido ! Ela tem que viver, ela precisa viver !
Os dois amigos montaram seus cavalos e demandaram a sede da fazenda. Quando a escrava chegou, já o médico do vilarejo esperava por ela. Sentenciou, após breve exame :
- Ela não vai morrer, coronel Eduardo. Vai ficar boa.
Eduardo ajoelhou-se ao lado da negra, que, de fraca, sequer abria os olhos. Segurou a mão calejada da escrava e apertou-a com carinho.
- Como é seu nome, mulher?
- Rosa...
- Você não vai morrer, Rosa... Eu prometo... Vou cuidar de você...
A mulher lentamente abriu os olhos, sorriu, e excla-mou, num sussurro :
- Deus lhe pague, sinhô... E... dos outros?... Quem vai cuidar?...
- Tudo vai mudar, Rosa... Tudo vai mudar...

À tardinha voltaram os dois para a Corte. Quase não trocaram palavras, Eduardo estava calado e pensativo. Lindolfo respeitou o silêncio do amigo, aturdido com as cenas que presenciara. Já perto do largo, Eduardo parou a montaria, no que foi seguido por Lindolfo.
- Lindolfo... - falava encarando o amigo - Resolvi. Vou imitá-lo...
- Imitar-me?
- Amanhã cedo todos os meus escravos estarão alforiados.

-Estou me sentindo mais leve, Célia. Parece que me foi tirado um peso dos ombros. Lindolfo tinha razão. Eu estava acoitando um monstro na fazenda, que mandava e desmandava em meu nome, e eu de nada sabia.
- Você nunca dirigiu sequer uma palavra a um escravo...
- Mas já conversei muito com eles, depois da alforria. Tinham medo de mim, pensavam que tudo o que Estevão fazia era por ordem minha. Mas são gente muito boa. Acreditaram no que eu disse, não guardam nenhum rancor...
- São gente, você disse? Não era o que dizia...
- Sabe do que mais? - Eduardo abraçou Célia, enquanto fazia rápido suspense - Nenhum deles quer sair da fazenda...
- E a Rosa?
- Esta fica aqui em casa. Vai lhe ajudar nas lides domésticas. Se ela quiser, é lógico.
- Se ela quiser... Você mudou mesmo, senhor meu marido... Eu também sinto que ela vai ser muito mais que uma mucama. Vai ser minha companheira.

-Lindolfo, graças a você, sou outro homem. Eu carregava nas costas enorme peso, na minha ganância. Você tinha razão. Há muito para todos. Não ficamos mais pobres com a alforria, não é mesmo? Minhas preocupações agora são outras.
- Posso imaginar quais sejam. As visões...
- Sim, as visões. A mesma cena. Aparece-me o nosso largo, porém descampado, sem o chafariz, calçado e iluminado por fortes lampiões que não conheço... E mais, pessoas com roupas estranhas, que nunca vi... e como vem, vai, a cena insólita, numa espécie de névoa... E o mais curioso é que sinto um impulso irresistível de descer e sair para o largo... Estarei enlouquecendo?
- Não, meu caro. Não será nada demais. Deixe que as coisas aconteçam sem sustos. Não apure...
Era difícil para Eduardo “não apurar”, como sugeria o compadre. Ademais, não era só ele. Quando estavam juntos, na janela, Célia também era brindada com o desconhecido.

Longo tempo se passou sem que Eduardo e Célia sentissem algo anormal. Uma manhã, porém, Célia cha-mou Eduardo à janela.
- Venha, querido, venha ver.
Desta vez, a cena não se desfez. Debaixo de um sol brilhante, pessoas vestidas com roupas estranhas, muito curtas, iam e vinham sobraçando embrulhos, parecendo todos estarem com muita pressa, muito diferentes da calma com que Eduardo e Célia estavam acostumados. Um jovem que passava olhou para a sacada e acenou-lhes :
- Bom dia, seu Eduardo ! Já está atrasado...
- Um momento, vamos descer já.
Eduardo apanhou sua pasta de cima da cadeira, botou a mão carinhosamente no ombro de Célia, e sorrindo, disse-lhe :
- Vamos?
Em seguida, desceram as escadas e ganharam a rua. Da sacada, Rosa lhes exibia seu sorriso de Mona Lisa...
  
O século dezenove havia ficado definitivamente para trás.