segunda-feira, 29 de novembro de 2010

NOVELAS...





Requisitos indispensáveis em uma novela, não necessariamente nesta ordem:

01 - Primeiro capítulo gravado no exterior.
02 - Alguém internado num hospital.
03 - Acidente com capotagem, ou carro caindo num barranco.
04 - Alguém de posse de carta ou documento revelador.
05 - Alguém não saber de quem é filho. Ou pai. Ou irmão.
06 - Núcleo pobre morar numa vila.
07 - Rapaz ou moça pobre apaixonado por moça ou rapaz rico.
08 - O último capítulo resolvendo tudo, com: “meses depois...”
09 - Empregadas mulatas ou negras.
10 - Núcleo cômico caricato e na vila. Fundo musical sambinha.
11 - Troca constante de parceiros na cama.
12 - Mulheres do núcleo rico não fazerem nada e/ou serem fúteis.
13 - O mal vencer o bem até o último capítulo.
14 - Machismo.
15 - Médico com estetoscópio no pescoço.
16 - Todas as casas terem escada e 2° andar, mesmo sendo apartamento.
17 - Grávidas perdendo o bebê, por conveniência.
18 - Empresário bem sucedido que perde tudo.
19 – Obsessão dos protagonistas por casamento.
20 - Pelo menos um gay.
21 - Cama de casal com janela por trás.
22 - Pais caretas e filhos rebeldes ou viceversa.
23 - Gravidez inesperada.
24 - Protagonistas perguntando: “Aconteceu alguma coisa?”
25 - Mãe sem caráter empurrando filha p. casar com milionário.  

Tudo isso com a desculpa de que “na vida real é assim”.
Com 80% desses itens utilizados, o êxito está garantido.
Quanto ao enredo, qualquer um serve, desde que deboche da inteligência do tele-espectador. Aliás, segundo palavras de Lima Duarte, os autores escrevem a mesma história para as novelas há quarenta anos. Foi a única vez que ouvi dele algo interessante.

terça-feira, 23 de novembro de 2010

PEDRAS NEGRAS


Direitos Autorais Garantidos




Novembro 2006
Paulo dirigia atento ao movimento da estrada, que não era grande. Meio de semana, sem períodos de férias ou feriados por perto, pista vazia, tudo contribuía para que, embora com a atenção voltada para o tráfego, não deixasse de admirar as belezas da paisagem. Não corria; não gostava, além de já se achar muito velho para exercitar os dotes automobilísticos. Aliás, quase nunca viajava mais de carro, preferia os ônibus ou o avião. Seus reflexos já não eram tão bons. Setenta e cinco anos, afinal.
Mas precisava ir de carro. Pelo menos daquela vez.
Nos últimos tempos nada lhe impedia de ganhar a estrada, mas sempre adiava a viagem. Inventava, para si mesmo, compromissos inexistentes, saúde precária ou simplesmente desânimo para o passeio.
Mas faltava-lhe mesmo era um pouco de coragem para ir sem Marina.
Fizera o mesmo percurso pela última vez há quarenta anos atrás, com ela. Antes, era comum irem juntos a Pedras Negras. Era o sítio predileto dos fins de semana, das férias, de qualquer escapada que fosse possível em meio à agitada vida de ambos. Deixavam tudo para trás, colocavam o mínimo necessário numa pequena valise e partiam para curtir a natureza. Sempre no mesmo chalé - o 113 – situado um pouco mais no alto do terreno e mais afastado que os outros, na bei-ra do riacho, que embalava, com o murmúrio suave de suas águas, a rede na pequena varanda. E tudo isso, às vezes, ainda sob um luar que mudava a noite em dia claro.
Quarenta anos! Parece que foi ontem - era o inevitável lugar comum – que ele e Marina pela última vez percorreram aquela estrada. Agora, ia sozinho, num esforço supremo para vencer a tristeza que o impedira, até então, de retornar a Pedras Negras. E obedecia, agora, a um inexplicável impulso que já há algum tempo vinha forçando-o a fazer a viagem. Afinal, precisava acabar com a estranha inibição que o mantinha longe de Pedras Negras.
Lembrava-se sempre daquele último retorno, ele sozinho no carro, acompanhando de perto a ambulância e sua estridente sirene, cujo som nunca mais deixou seus ouvidos. Depois, a agonia no hospital, a falta de notícias na sala de espera, e o enorme vazio no apartamento, que apenas dois dias antes era cheio de vida e de alegria. Marina se fora.
Quarenta anos... Paulo queria preservar na lembrança não a última vez, mas a penúltima, e todas as outras, e tantas outras, e aquela rede na varanda e o murmúrio do riacho e os suaves ruídos da noite e os vaga-lumes que disputavam com a lua cheia a glória de iluminar as noites do pequeno chalé... Nunca teve um sentimento de queixa ou de incompreensão pelo acontecido. Tão moça! Sim, tão moça... mas com tanto amor, tanto carinho, que ele preferia alegrar-se com os momentos bons que passou ao seu lado a sofrer porque não os teria mais.
Por tudo isso evitou, durante tanto tempo, rever os sítios que o prendiam às lembranças da última vez que ali esteve. Tinha medo de não suportar o choque.
Ia dirigindo devagar, como que com medo de chegar, prolongando sem consciência a viagem que sempre lhe fora tão cara. Estava excitado, não conseguia controlar a emoção. Veio-lhe a absurda idéia de um reencontro com Marina. “Que bobagem...” - pensou - “Eu, um velho... e Marina, tão nova...” Os pensamentos fantasiavam a sua mente.
Planejou chegar a Pedras Negras à noitinha, com as luzes do poente, como costumava fazer a pedido de Marina. “É mais bonito” - dizia ela - “A esta hora tudo é mais bonito...”. Pretendia, na calma do crepúsculo, percorrer todo o sítio calmamente, antes de apresentar-se à recepção, para dissolver qualquer sentimento que denunciasse sua emoção. Dentro em pouco deixaria a estrada principal e tomaria o caminho de terra que terminava no portal da fazenda. A lua cheia –- outro item na sua programação daquele passeio - já se insinuava no horizonte. 

Enfim, chegou. O silêncio e a paz eram contagiantes. Pareciam já estar todos os hóspedes recolhidos, embora ainda não houvesse tocado o pequeno sino chamando para o jantar. Não eram ainda seis horas. Uma luzinha ou outra, dentro dos chalés, indicavam talvez a presença de poucos hóspedes. O hotel devia estar quase vazio. Melhor assim, poderia caminhar por tudo sem cruzar com ninguém.
A pé, foi revendo o que já tanto conhecia. Nenhuma mudança, em todo aqueles anos? Os mesmos chalés, impecavelmente conservados; mais ao longe a sede, o refeitório, a rústica piscina, a roda d’água, tudo, tudo como da... última vez.
-Ah, Marina... Onde você está?...
Paulo murmurou para si mesmo, baixinho. Em seguida, tomou o caminho do ‘seu’ chalé. Atravessou, de cabeça baixa, a pequena ponte sobre o riacho e subiu a rampa que terminava na entrada. Quando levantou os olhos, viu que alguém estava na varanda, recostado no pilar da amurada. A penumbra não deixou que visse nada além de um vulto. Dês-concertado, deu meia-volta. “Tomara que não me tenha visto”- pensou -“Como eu iria explicar, já estando praticamente dentro do chalé, o que estaria fazendo ali?”
Foi quando ouviu alguém lhe chamar:
-Paulo...
Ele conhecia muito bem aquela voz. Parou, mas manteve-se de costas para a varanda. De que era capaz, uma mente conturbada... Ficou extático uns poucos segundos, que lhe pareceram uma eternidade. Queria afastar-se, mas suas pernas não lhe obedeciam.
-Sou eu, Paulo...
-Marina?...
Paulo voltou-se, lentamente.
Marina lhe sorria, estendendo-lhe os braços. Ele subiu até a varanda. Estava frente a ela. Sentiu de bem perto seu perfume, seu calor.
-Você veio, Marina... Está mais linda que nunca...
Abraçaram-se longamente. Paulo não queria, não precisava entender. Estava com Marina novamente. Fugiram-lhe as palavras. A alegria do encontro era tão grande que ele emudeceu. Mas Marina tinha um motivo para estar ali.
-Como você veio até aqui, Paulo?
Paulo estranhou a pergunta. Eles tinham tanto a conversar... Como tinha vindo?
-No meu carro...
-Onde ele está?
-Lá embaixo, logo depois do portão, onde nós sempre o deixávamos. Mas... por que?...
Marina sorria, meiga.
-Vamos lá vê-lo?
Paulo não entendeu o súbito interesse de Marina pelo seu automóvel. Se não era nem mais aquele no qual sempre viajavam juntos... E por que naquele momento, tão singular? Se tinham tanto a conversar... Não questionou, era irrelevante. Seguiram os dois pelo mesmo caminho por onde ele havia chegado.
-Onde está, Paulo?
-Ora... Devia estar aqui, não era onde o colocávamos sempre? Alguém do hotel já deve tê-lo recolhido à garagem.
Marina olhou-o com tanta doçura que ele desligou-se do estranho diálogo. Havia tanta coisa a falar, e ele tinha medo de perdê-la novamente. Mas ela insistiu:
-Seu carro está lá na estrada, Paulo.
E abraçou-o, fortemente, encostando a cabeça em seu peito. Ele não entendeu.
-Onde? Na estrada? Em qual estrada?
-Eu vim lhe buscar, Paulo...
Paulo pareceu não ouvir estas últimas palavras.
-Vamos lá, Marina... Vamos, então, lá na estrada... Por que ele estaria lá?
-Para que, Paulo? Quem está lá no carro não é você, você está aqui comigo...
Só então Paulo entendeu. Marina disse que viera lhe buscar, e ele iria com ela.
Segurou-lhe o rosto com as duas mãos e deu-lhe um beijo na fronte. Depois, enlaçou-a num abraço e disse:
-Vamos, então... Vamos para a nossa rede...
Tomaram o caminho do pequeno chalé 113. Só então percebeu que não fora o velho Paulo que havia chegado em Pedras Negras. Ele estava tão jovem quanto Marina.
Seus setenta e cinco anos haviam ficado lá na estrada, no carro...

terça-feira, 16 de novembro de 2010

OS ÚLTIMOS VINTE E CINCO




Há três anos entrei nos últimos vinte e cinco.
Cada vida, salvo raras exceções, compõe-se normalmente de quatro vinte-e-cincos, cada um com cinco lustros. O quinto é bem raro, geralmente é pra quem não joga, não fuma e não bebe. Mas, às vezes não, quem joga, fuma e bebe também chega lá. Em tudo há exceção.
Nem sempre, ou quase nunca é prazerosa, a estadia além dos últimos vinte-e-cinco. Todo mundo já foi embora, você fica sozinho. Ou fica sozinho, ou vira criança outra vez, aos olhos dos outros.
Cada qual no seu cada qual. Cada qual no seu vinte-e-cinco.

No primeiro vinte-e-cinco você surge, como diz o povo, pelado, careca e desdentado. E acrescento: completamente dependente. Por isso, o que vier é lucro.
No primeiro lustro, todo mundo é igual, são todos inocentes, não têm a menor noção do que os espera. A vida é boa, mesmo que muitos continuem pelados e desdentados (e olhe que estes se contam aos milhões...), e a vida é boa porque ainda não é por culpa deles que estão assim.
É, a vida ainda é boa.
No segundo lustro, começam a perceber que existem diferenças, que uns são lourinhos, tem olhos azuis e usam roupas cheirosas, e outros usam tangas e são muito barrigudos e remelentos. Mas, ainda assim, a vida é boa, continuam inteiramente dependentes. É claro que há os meios-termos. São estes os mais satisfeitos com a vida.
No terceiro lustro, o bicho começa a pegar. Começam prematuramente os “porquês”, ainda sem respostas. São, porque são, e pronto. Diminui muito o número dos que acham que a vida ainda é boa, são a minoria. São os que não podem mais ser dependentes;
Dividem-se naturalmente em três grandes grupos: os comprados-prontos, os meios-termos e os tristes-vidas. Os primeiros estão achando a vida ótima. Os meios-termos desde cedo dão duro, começam a procurar o seu futuro. Os tristes-vidas ainda não procuram o futuro, estão atrás apenas do que comer.
No quarto lustro, o primeiro grupo apenas usufrui daqueles outros que já estão no terceiro vinte-e-cinco.  Sempre dependentes. O futuro vem até ele, de mão beijada. O segundo grupo começa a luta para conseguir o que os do primeiro já encontram pronto. E o terceiro grupo já tem o que comer, e só.
Quinto lustro: Alguns comprados-prontos usufruem demais, e por isso se perdem entre risos e alegrias, mas muitos outros agarram aquilo que lhes veio de mão beijada, com unhas e dentes, e multiplicam seus risos e alegrias; que são compartilhados, às vezes, com muitos meios-termos, que, embora continuem meios-termos, seguem emparelhados com eles, valorizando as alegrias conquistadas. Suando, mas seguem. Os tristes-vidas continuam na luta, reconhecendo cada vez mais o valor do que conseguem, suando muito, muito.
Complicado?

Então, todo mundo passa para o segundo vinte-e-cinco.
Aqui é que acontecem as coisas mais importantes pra esse todo mundo, enquanto não passam para o terceiro vinte-e-cinco.
Com exceções, é claro, porque em tudo há exceções, já disse, a gente vê estes três grupos diminuírem as distâncias que os separam. Não falo de dinheiro; essa diferença vai existir sempre. Falo de relacionamentos, de solidariedade, de compreensão mútua, enfim – todos se toleram mais, já que ainda continua sendo difícil amarem-se como deveriam. Desvios, haverá sempre, em qualquer dos três grupos.
Uns dedicam-se aos outros, e nos desvios outros dedicam-se a si mesmos.
Uns, percebem a tempo porque encontraram lá trás tudo pronto, e dividem com quem encontrou tudo por fazer. Outros, apenas multiplicam o que encontraram pronto.
Uns, pegam em armas (de um ou de outro lado). Outros, em ferramentas.
Uns, sobem. Outros, descem.
Mas todos, quando chegam ao fim do segundo vinte-e-cinco, estão com a vida delineada. Quem é, é. Quem não é, não é. É claro que alguns ainda conseguem se aprumar, enquanto outros se desaprumam de vez. Mas, no fundo, no fundo, nunca negam suas raízes.
Complicado?

Então, quase todo mundo passa para o terceiro vinte-e-cinco. Quase, por que? Porque, é claro, a vida não é eterna.
Cada vinte-e-cinco é uma etapa bem delineada, se bem pensarmos. Quando se passa de um pro outro, parece que muda tudo. Nesse terceiro, por exemplo, olha só:
Os comprados-prontos estão cada vez mais comprados-prontos, e a esta altura já produziram outros comprados-prontinhos, e a vida continua sorrindo. Sorrindo? Ninguém sabe o que se esconde naqueles corações. Com os bolsos cheios, sim, mas sorrindo, nem sempre. Aqueles, desse grupo, que se perderam entre risos e alegrias, talvez nem mais estejam por aqui, talvez se tenham perdido de vez.
Os meios-termos deverão estar estabelecidos, nem sempre bem estabelecidos, mas tocando a vida com consciência de que fizeram o que deveria ser feito. O que não quer dizer bolso cheio. Alguns se perderam, não há regra sem exceção. Outros fizeram-se, para o futuro, comprados-prontos, queira Deus que tenha sido com decência e muito trabalho, sem trair as raízes.
Os tristes-vidas continuarão lutando, lutando, também conscientes de que fizeram o que deveria ser feito, sabendo, talvez, desde o primeiro vinte-e-cinco que a coisa ia ser assim. Mas terão exercitado muito a solidariedade, o amor ao próximo e a paciência. É o que sempre se vê entre eles (ou nós?).
Não é complicado.

Então, muitos menos de todo mundo passam para os últimos vinte-e-cinco.
Porque, se não há doenças, e sim, doentes, se a vida é dura e muitos ficam pelo caminho, é natural, chegou a hora dos que foram, já disse, a vida não é eterna. Os que entram nos últimos vinte-e-cinco estão conscientes e tranquilos. Conscientes e tranquilos não quer dizer dinheiro no bolso, quer dizer apenas que: quem fez, fez. Agora, ou se amarga ou se usufrui, com o que não se fez ou com o que se fez. Missão cumprida é lugar-comum, não há missão cumprida, as missões estão sempre em andamento, mesmo que passem despercebidas. Se se amarga por um lado, se usufrui por outro. Pobre daquele que só amarga.

Agora, eu.
Há três anos entrei nos últimos vinte-e-cinco. Estou assim, consciente e tranquilo, sem dinheiro no bolso. O que fiz, fiz. Não amargo, usufruo.
Pelas estatísticas, já estou na moratória. Mas isso não quer dizer nada, estatísticas que dividem homens em frações (23,75 dos homens estão... etc) não podem ser levadas a sério.
Sempre fui um meio-termo. Nasci quase um comprado-pronto, mas logo, logo, passei para os meios-termos. E cheguei à conclusão de que esta é a melhor classe. Como sempre, tudo é melhor com parcimônia. Passei pelas três etapas sem que ninguém percebesse. Nasci, cresci, fiz família, plantei uma árvore, escrevi um livro mas não publiquei, fui um ilustre desconhecido, nem feio nem bonito, nem gordo nem magro, nem burro nem inteligente, nem rico nem pobre. Feliz e infeliz. Fiz parte da maioria, um autêntico meio-termo. Quando eu me mandar desta para melhor (eu espero), vão chorar um pouquinho, mas nada que dure mais do que seis meses. Normal. Ninguém é insubstituível.
Se dependesse de mim, iria até o próximo vinte-e-cinco, quase ninguém chega lá, engrossando um pouco a frágil fileira dos três dígitos. Aí já não seria mais um ilustre desconhecido, os três dígitos me dariam fama imerecida, por não querer dizer nada, isso. Motivaria reportagens, apareceria até na televisão, ao lado de outros tipos díspares, como jogadores de futebol beijando a camisa, deputados guardado dinheiro nas meias e prêmios Nobel merecidos. Faria parte da minoria famosa. Três dígitos!   
Mas não depende de mim chegar lá. Aliás, depende, até certo ponto, de tudo o que eu fiz até hoje. Mas isso é outra história.

domingo, 14 de novembro de 2010

QUARTO DE BONECA


Direitos autorais protegidos


 Sótãos são sempre misteriosos... Ainda que nada guardem, mesmo que em seu bojo exista apenas uma eficiente caixa d’água, além do madeirame recoberto de telhas, um sótão sempre sugere algo mágico, inexplorado...
O da casa de Maria José não escapava desta regra. Mas este era um sótão diferente. Pequenino, bastante exíguo, nada era guardado lá em cima, mais por falta de espaço do que por necessidade, que esta sempre há. Diferente, porque embora não passasse de um desvão, tinha até uma janela. O arquiteto, fiel ao estilo normando da casa, havia projetado o telhado com inclinação suficiente para acúmulo de neve... muito embora nunca se tivesse tido notícia de uma nevasca em Bicas... Sem trocadilho. Bicas, Minas Gerais... Então, para compor a fachada colocou uma janela na pequena pirâmide incrustada no meio das telhas, como se fosse um quarto de boneca.
Maria José tinha seis anos, a idade das fantasias irrefreáveis. Idade em que a criança ainda vive em dois mundos paralelos.
- Mãe...
- Sim, filha?
- Sabe o quartinho de boneca? - ela o batizara assim e o resto da família acabou adotando a designação.
- Tem uma...
- Não me peça novamente para subir lá, minha fi-lha. Eu já lhe disse: não há nada lá em cima, nem quarto é. Poeira sim, há e muita.
- Não é nada disso, mamãe. Sabe o que é? Tem uma boneca lá na janela. Ela riu pra mim e me deu adeus.
- Até isso, Zezé? É tanta assim a vontade de subir naquele sótão? Você não sabe o calor que faz debaixo daquelas telhas...
- O que é sótão?
- Querida, volte a brincar com as suas bonecas. Daqui a pouco o papai chega para almoçar e não tem nada pronto.
Maria José saiu. Não ficou triste. Para ela, uma boneca lhe acenando do sótão era uma coisa normal. Provavelmente seria ali a sua casa.
Mas ela não podia ir visitá-la porque era muito quente e empoeirada. Encerrou o assunto e voltou às comidinhas.
Num outro dia, durante o jantar, os pais conversavam e obviamente Maria José não tinha o menor interesse na conversa dos dois, até que ouviu a palavra “sótão” dita pelo seu pai. Automaticamente ligou as anteninhas.
- Vou aproveitar o sábado e dar uma limpeza no sótão. Há anos ninguém sobe lá e de vez em quando é preciso dar uma olhada nas instalações e ver o estado em que estão as telhas.
- Posso ajudar você, pai?
O olhar vivo e interessado despertou curiosidade no pai, pelo oferecimento tão espontâneo. A mãe interveio:
- Noutro dia ela me disse que havia uma amiguinha dela dando tchau pela janela.
- Amiguinha não! Tinha era uma boneca, mãe! Vê! Eu nem conheço ela... Era uma bo-ne-ca!
- Uma bonequinha! Mas que beleza! - o casal trocou olhares compreensivos - Vamos fazer um trato, Zezé. Quando eu subir lá eu trago essa boneca para você, tá?
“Trazer pra mim?”- pensou ela - “Mas eu quero é ir lá fazer uma visita, é conhecer a casa dela...”
Continuou, pensativa, a tomar a sua sopinha.

No sábado seguinte, a limpeza foi feita. Exausto, o pai já vinha descendo pela escada apoiada no alçapão, com todos os apetrechos de limpeza. Desde que ele subira que Maria José estava plantada bem embaixo, na expectativa.
- Zezé, acho que a bonequinha saiu. Não encontrei ninguém lá em cima. Mas eu dei uma boa limpeza, isso eu garanto.
“Ela deve ter saído mesmo”- a imaginação de Maria José alçou vôo - “Com certeza foi fazer compras. Que idéia essa do papai, ir entrando assim na casa dos outros! Ainda mais pra fazer limpeza... Ela convidou foi a mim e não a ele...”
E voltou às brincadeiras, no jardim defronte a casa.
Estava às voltas com um desfile de modas, quando ouviu um “psiu” vindo do sótão.
Era a boneca. Grande, bonita, de olhos muito redondos e enormes cílios, cabelos louros caindo em tranças pelos ombros. Com sinais, chamava-a para a sua “casa”.
“Ela já chegou... acho que agora eu posso ir lá, porque a casa deve estar toda arrumadinha. Papai limpou tudo...”
Ato contínuo, correu pela casa a dentro e subiu as escadas. No fundo do corredor viu que o pai esquecera o alçapão aberto e a escada encostada na parede. Zezé não hesitou. Subiu e enfiou a cabecinha na escuridão. Seus olhos, acostumados à claridade, de início nada viram. Mas aos poucos foram se adaptando à penumbra silenciosa do sótão.
Então, um largo sorriso iluminou o seu rosto.
Era o quarto de boneca mais lindo que havia conhecido! Todo rosa e branco, cheio de coraçõezinhos e laços de fita, pendentes, como adorno! Tinha uma caminha dourada, a penteadeira, o armário, a mesa e as cadeiras, tudo pequenininho, muito menor que ela...
Perto da janela, a boneca lhe sorria. Seus cabelos pareciam feitos de espigas de trigo trançadas, e o vestidinho curto e quadriculado ia muito bem com as meias listradas.
- Como vai, Zezé?
- Puxa, que casa bonita você tem!
- É, eu cuido muito bem dela. Você não cuida do seu quarto também?
Zezé encabulou. Lembrou das arrumações sempre reclamadas pela mamãe e nunca feitas, e não soube mentir, frente àquela boneca de pano.
- Mais ou menos... Mas o meu quarto também é muito bonito, a mamãe sempre arruma ele.
- A mamãe, não é? Você tem que ajudar a ela, Zezé.
- Mas eu ajudo... Como é seu nome?
Era evidente a pressa em começar outro assunto. Arrumar o quarto nunca estava nos seus planos.
- Meu nome? É Emília.
- Emília... Que nome bonito! Eu quero ser sua amiga.
O sorriso de Maria José tinha a espontaneidade das crianças, honesto e verdadeiro. A boneca olhou longamente para a menina, que não conseguiu captar a ternura quase humana daquele olhar.
- Você vai ser sim, Zezé. Muito, muito minha amiga...
A menina sorriu.
A boneca continuava olhando-a, com muita ternura, enquanto Zezé, distraída, examinava os pormenores daquele quarto encantado.
- Mamãe e papai sabem que você mora aqui?
- Acho que não, porque eles nunca vem aqui em casa.
- Mas papai veio hoje de manhã aqui. Acho que ele não viu você. Sabe o que é que eu acho? Gente grande não entende nada de bonecas.
- E não entende mesmo...
Ficaram as duas fitando-se e rindo.
Foi Emília quem falou primeiro.
- Zezé...
- Que é?
- Você quer ser minha mãe?
Os olhinhos de Maria José brilharam. Um sorriso de alegria, misto com indisfarçável descrédito, a fez perguntar:
-Agora? Vamos brincar? Só quero se for para sempre!
- Nada é para sempre, Zezé. Hoje você é minha mãe, amanhã vou ser a sua, depois você de novo... Tá?
- Mas primeiro eu, tá?
A boneca ficou radiante com a proposta. Quem ali seria a mãe, quem seria a filha?
- Maria José!
- Ih, mamãe está chamando! Emília, eu tenho que ir embora!
Escorregou, rápida, pelo alçapão. Mas antes de ir enfiou de novo a cabecinha na abertura do teto e disse:
- Sabe? Não adianta eu falar com ninguém sobre a sua casa. Gente grande não vê mesmo...
- É... não fale não. Fica sendo um segredo só nosso, tá?
- Tá, tchau!

E Maria José cresceu. Cresceu romântica e sonhadora. Jamais esqueceu aquela criação de sua mente, aquele fantástico sótão que um dia se transformou (eu juro!) em um maravilhoso quarto de boneca.
Voltava lá, mesmo depois de crescida. Era ela então que mantinha o sótão limpo e bem cuidado, embora nem chegasse aos pés do “quarto da Emília”.
Um dia, para surpresa sua, identificou num livro infantil de sua irmãzinha, a sua Emília! Correu a dizer a todos que já conhecia há muito tempo aquela boneca, embora não soubesse que o livro era novo; e que já conversara com ela muitas e muitas vezes. A maneira preocupada como a olharam, quando disse aquilo, fez com que ela compreendesse logo que seria bom continuar considerando aquele assunto somente seu... e de Emília.
Ainda por muitos anos bateram longos papos, as duas, lá no sótão. Só que agora era diferente, era uma conversa sem sons, sem palavras, era um mudo diálogo entre dois seres que permutavam pensamentos e cuja afinidade crescia com o silêncio. Selaram os antigos pactos de maternidade, ainda não muito bem assimilados por Maria José, que no entanto continuava dando asas à imaginação, nas mágicas tardes que passava no quarto de boneca.
Numa dessas vezes, Emília perguntou:
- Está de pé o nosso trato?
- De você ser minha filha? Claro! Só que não sei como vai poder ser isso.
- Calma... Eu também não sei. Mas sei de outra coisa: vai ser por pouco tempo.
Maria José assustou-se :
- Por pouco tempo? Por que? Por quanto tempo?
- Só enquanto eu for sua bonequinha. Depois, vou precisar ir embora, e então mais tarde, muito mais tarde, a gente se encontra de novo.
- Mas por que? Por que tem que ser assim?
Não havia resquício de tristeza na pergunta, apenas curiosidade.
- Isso, nem eu sei. Mas um dia a gente irá saber. Quando a gente menos esperar...
Maria José aceitou o trato. O sótão era mágico, envolvia-a inteiramente. Tinha a certeza de que nada do que acontecia ali poderia estar errado. E depois, havia ainda a promessa do reencontro.

- Maria José! Será que você vai ficar aí em cima até a hora de ir para a igreja? Você precisa se vestir, minha filha!
E Maria José casou. Nunca mais foi ao sótão, embora curtisse muito aquelas lembranças, mesmo que nunca houvesse chegado a compreendê-las muito bem.
Logo nasceu-lhe uma filha, uma linda menina que recebeu o nome de... Emília, lógico. E ela só chamava Emília de “minha boneca”. Mais tarde chegou mesmo a contar para Emília toda a história do sótão, as suas conversas com a boneca e as combinações que fizera. Emília achava aquilo tudo muito “careta”. E riam juntas. “Lá vem a mamãe com as histórias do sótão”, dizia para as visitas, sempre que Maria José começava a contar suas aventuras infantis.

Mas chegou o dia em que a Emília cresceu, deixou de ser a sua bonequinha. Chegara a hora de partir, de voar mais alto, de continuar o seu caminho. Iria retomar o aprendizado, liberta dos obstáculos que conseguira transpor. Partiria ainda mais pura do que quando chegara, de tão cedo que iria, e por certo dentro em breve estaria de volta. Quem sabe haveria mesmo uma troca? Manteriam as duas o “trato” e depois ela seria a mamãe, por que não?
E Maria José estaria lá em cima, num outro quarto de boneca, acenando para ela, povoando os seus sonhos, e, quem sabe, perguntando:
- Você quer ser minha mãe?


AMIGO FIEL


Direitos autorais protegidos


- Boa tarde, doutor.
- Boa tarde. Sente-se, fique à vontade.
- Muito agradável, o seu consultório.
- Muito obrigado. 
André não estava à vontade. Era a velha timidez que o embaraçava. Sentou-se em frente ao médico e ficou calado. A custo, esboçou um sorriso amarelado.
- É a primeira vez que consulta um analista?
- É...
- Muito bem. O que o trouxe aqui?
- Não... não foi bem um problema. Isto é, talvez seja, não sei. É um leão...
- Um leão?
- Eu sou muito tímido. Muito tímido... Sempre fui...
- Sei. E isso o incomoda.
- Muito. A vida toda. Setenta anos...
- A minha idade...
- Por isso lhe procurei. Esses analistas mais jovens têm umas idéias estranhas...
Ele começava a se soltar. Melhor assim. “Daqui a pouco vai estar à vontade”, pensou o outro.
Então, a porta da sala abriu-se lentamente, e o leão entrou.
- Bonito, o bicho...
André voltou-se para o animal.
- É...
Ele veio caminhando lentamente e sentou-se ao lado de sua cadeira.
- Ele gosta de você...
- Nem sempre ele me acompanha. Às vezes aparece em ocasiões que eu não esperava. Como agora...
- Sei. Então?
- Eu acho melhor contar a história desde o princípio.
- Claro.
- Eu já era rapaz, quando o vi pela segunda vez.
- Pela segunda vez? E a primeira?
- Na primeira vez eu era garoto, e ele era só um gatinho.
André fez uma pausa.
- Mas deixe-me começar pela segunda. Foi de manhã, quando me levantei. Não o vi, mas sabia que ele estava na casa. Gozado... Depois de tanto tempo, aparecia novamente...
“Eu morava com minha irmã em um casarão enorme, em Botafogo, herança de família. Éramos jovens, eu devia ter uns vinte anos. Ela beirava os trinta.
“Acordei achando que tinha um leão no banheiro. Na hora pensei no leãozinho da minha infância. Fui até lá, e quando abri a porta, não tive dúvida - apesar do bicho já ser adulto e todos os leões serem iguais, eu sabia que era ele. Estava deitado dentro da banheira, imponente, muito imponente, apesar do ridículo da cena. Olhava-me mansamente. Fiquei parado na porta entreaberta, a mão na maçaneta, olhando para ele, como quem diz: “o que você está fazendo aí?”. Ele apoiou a cabeça na borda da banheira, lambeu o focinho duas vezes e fechou os olhos preguiçosamente. Até que escolheu bem o local. A banheira era o lugar mais fresco da casa, e o dia amanhecera muito quente.
“Deixei a porta aberta - por que fugiria? - e chamei minha irmã, que me respondeu espreguiçando-se. Disse-lhe que tinha um leão cochilando dentro da banheira. Ela sentou-se na cama, com cara de sono, aguardando o resto da brincadeira. Não tinha resto.
“- Vamos lá, pra você ver.
“Ela me acompanhou.
“- Como ele entrou? – perguntou-me, puxando pelo resto que não havia.
“- Não sei, mas ele está aí, olhe.
“Tomei-lhe a frente, sentei na borda da banheira e acariciei a juba do bicho. Ela encostou-se na porta, cruzou os braços, olhou para ele e sorriu.
“- E daí? - falou. Depois abriu o armário sobre o lavatório, apanhou a escova de dentes e o creme dental:
“- Agora dá o fora, senão acabo me atrasando para sair. E leve esse bicho com você.
“O leão sorriu para mim. Levantei-me, deixei o banheiro e ele me acompanhou, sem antes fazer um alongamento esticando as patas dianteiras, e, grande como era, ao sair esfregou-se nas pernas da minha irmã, que estava em frente à pia. Ela encolheu-se, para lhe dar passagem e olhou para mim, balançando a cabeça:
“- Qual...
“Depois desse incidente, foi que me lembrei do nosso primeiro encontro. Foi numa tarde, no colégio. Eu estava no primário, e já essa timidez me acompanhava. Meti-me, nem sei como, numa rixa com um coleguinha. Arrependi-me no ato, pois o garoto era mais avantajado do que eu. Mas a turma cercou-nos, e não me perdoaria se eu recuasse, com certeza chamando-me, no mínimo de maricas, que era o xingamento máximo da época. Preparei-me para receber o primeiro golpe, só ele já me poria fora de combate. Quando o outro se aproximou, já com a mão fechada, ouvi um rugido perto de mim. Era o leãozinho, sentado ao meu lado. A turma que esperava a briga debandou na hora, e o meu “agressor” ficou parado na minha frente, extático, de olhos arregalados, olhando para as presas que o reizinho das selvas exibia, assustadoramente. Então, começou a recuar, recuar, até perder o equilíbrio e cair de costas no chão. Mas levantou-se de um salto e saiu em disparada, enquanto eu acariciava o bichano, que lambia a minha mão.
“Dali a pouco o garoto voltou, rebocando a inspetora pela mão, enquanto apontava para mim. Ela gritou:
“- Não quero mais ver este bicho por aqui !
“Ele nunca mais voltou. Poxa, e lá se foram onze anos até que desse as caras outra vez...
“Depois do café, minha irmã saiu para o trabalho e eu para a faculdade. Ainda olhei em volta, com o rabo-de-olho, mas não vi mais o meu protetor.
“Curioso, inspirava-me confiança, a sua presença.”

André se deu ao direito à nostalgia. Sem perceber, soltava-se. Por um instante, esqueceu até o bichano:
- A faculdade era na Praia Vermelha, dava gosto estudar lá. O ambiente, a construção colonial, os salões grandes e arejados, os professores cultos e interessados em passar adiante o seu conhecimento, os colegas bons companheiros, enfim... Já não se fazem mais faculdades como antigamente...
Ele agora estava à vontade:
- Sabe, eu tinha até uma colega muito especial, a Aline. Muito especial... E eu achava que o era também, para ela. Mas, e a coragem? Eu continuava o mesmo garoto tímido da infância...
“Um dia, entre uma aula e outra, fui para o pátio atrás da escola. Um pátio que mais parecia um bosque. Uma beleza. Estava lá pensando na vida, quando vi Aline se aproximando. Ao seu lado, caminhando calmamente, lá vinha ele.”
- O leão...
- É. Ela chegou e sentou-se ao meu lado:
“- Não sei por que esse leão está me acompanhando.
“- Ele é manso.
“- Eu sei. Se até agora não me fez nada...
“Aline irradiava tanto charme, tanta simpatia, que cativou a nós todos, na faculdade. Desde que a vi pela primeira vez, senti que seria a mulher da minha vida. E estava certo. Ela é a mulher da minha vida até hoje.”
- Bonito, isso. Muito bonito. - O médico apontou na sua direção - E raro. Muito raro.
André sorriu, vaidoso.
- Então, tomei coragem :
“- Aline, tenho uma coisa para te falar.
“- Sim?
- Olhe, vou dizer tudo de uma vez.
“E declarei-me, deixando a timidez de lado, como se fosse o mais intrépido dos amantes. Não terminei o meu discurso. Ela interrompeu-me, para dizer :
“- Não precisa dizer mais nada. Até que enfim ouvi o que queria ouvir de você, há tanto tempo...
“Ela olhou com carinho para o leão, que se deitara em frente ao banco onde estávamos. Depois, beijou o dedo indicador e encostou-o na minha boca.
“- Ele é muito bonito. Tão manso...
“Levantamo-nos e seguimos para a próxima aula, abraçados... Ele ficou lá, nos olhando.”
André baixou os olhos. O leão dormia tranquilamente ao seu lado. Afagou-o:
- Meu amigo é fiel. Aparece sempre que eu preciso dele. Impõe respeito.
O médico balançou a cabeça, concordando.
- De outra vez - eu já formado - quando participava de uma reunião onde não estava conseguindo expor minhas idéias sobre um projeto de arquitetura - e eram boas idéias, melhores do que as de todos os outros, modéstia à parte - comecei a sentir-me derrotado. Os argumentos dos outros ganhavam força, graças às palavras enfáticas que me faltaram, na minha explanação. Afundava-me na cadeira, enquanto recolhia meus projetos. Ouvi, então, o rugido tão conhecido. A porta da sala entreabriu-se e o meu amigo meteu a juba pela fresta. Mostrou os dentes, como o mais temível rei das selvas. Eu sabia que era blefe, mas funcionou. Pedi a palavra, mais uma vez, e elas soltaram-se da minha boca com facilidade, em argumentos imbatíveis.
 “- O contrato é seu. – o cliente disse-me, entusiasmado - É muito bom o seu projeto. Não tenho medo de leões...
“O bichano veio e encostou-se nele, como que apoiando-o. Os outros colegas saíram da sala, um tanto decepcionados.
“Saímos, depois, os três. Ele com a mão no meu ombro, e eu com o contrato na mão. E o meu amigo ao meu lado.
“Eu poderia dar mais meia dúzia de exemplos, doutor. Coincidência ou não, meu companheiro aparece sempre que preciso destravar a língua...”

O felino deitado ao lado de André, ressonava.
- Que bom, André. Mas ainda não entendi por que você veio procurar-me. Se não é por causa dele...
- Não, não é. Não diretamente.
- Por que foi que veio, então?
- Tenho medo, doutor. Acostumei-me tanto com ele, com o respeito que impõe às pessoas, que tenho receio de um dia achar-me em situação difícil e ele não aparecer.
- Quantos anos você tem?
- Setenta e quatro.
- E quantos tinha quando o viu pela primeira vez?
- Bem... uns dez anos.
- Quer dizer que ele é seu amigo há sessenta e quatro anos?
- É...
- Quantos anos tem o leão?
- Não sei...
- Meu caro André... Esse leão nasceu com você e vai morrer com você... E na nossa idade, cada vez menos iremos precisar de um leão ao nosso lado... Logo agora, você com essa idade, que as coisas estão mais fáceis... talvez você nem precise mais dele... e está preocupado? Você não precisa nem de mim... Deixe sua vida seguir...
André sentiu-se aliviado com aquelas palavras. Precisou, sim, do analista. Como não? Precisaria ainda do seu amigo fiel? E ele iria abandoná-lo? Logo agora, quando, por certo, teria menos trabalho?...
Levantou-se, encheu o peito, cumprimentou o médico e ganhou a porta. Atrás dele, o leão voltou-se, deu uma rosnada suave, como que se despedindo do médico, e seguiu André.