quinta-feira, 28 de outubro de 2010

SOMOS TODOS IGUAIS


Baseado em um texto escrito por mim em 1966




- Meu caro, é o que estou lhe dizendo: para mim, morreu, acabou.
- Bastante simplista, não?
- E para que complicar?
- Tem razão. Quanto mais simples, melhor.
- Então você concorda comigo?
- Não.
- O que é que você acha tão simples, então?
- Se eu lhe fizer um monte de perguntas - assim como Sócrates fez com Platão - você me responderá?
- Sócrates e Platão... Você já começou a complicar.
- É o que todo mundo pensa. Não há nada mais simples do que o pensamento de Sócrates. Você sabia que ele fez com que um escravo analfabeto fizesse contas de somar, apenas com perguntas e respostas?
- Você agora me chamou de analfabeto. Não sou versado em Sócrates e Platão.
- Nem eu. Deixa pra lá. Topa minhas perguntas?
- Vamos lá.
- Seu corpo é formado de que?
- Ora, sei lá... Moléculas...
- Isso. E as moléculas, são formadas por quê?
- Por átomos.
- E os átomos?
- Espere aí : onde você quer chegar?
- Pode deixar que vou parar nos átomos. Mesmo porque daí pra frente nem eu sei.
- Bem, os átomos, que eu saiba, são formados de protons, eletrons, neutrons... Partículas com carga elétrica positiva, negativa, ou sem carga elétrica... Foi o que eu aprendi no científico.
- Depois disso descobriram muito mais coisas dentro dos átomos. Mas não nos interessam essas descobertas. Concorda que os átomos têm um núcleo, onde em volta giram as partículas?
- Claro.
- Assim como nosso sistema solar? Um sol no centro, o núcleo e os planetas girando em volta dele?
- É, mais ou menos.
- Então uma molécula é composta por um ou mais sistemas solares, independentes, que não se tocam, tendo o “vazio”, entre aspas, separando-os?
- Bem...
- E o nosso corpo não é nada mais, nada menos do que um aglomerado de moléculas?
- É. Mas eu não vejo nenhuma relação entre estas perguntas e o início da nossa conversa.
- Calma. Agora me diga : de que é formada uma pedra?
- De moléculas. Outro tipo, claro.
- Na verdade, nem de outro “tipo” elas são. São apenas mais coesas. Mais juntinhas, sabe como é? Por isso a pedra é dura... Moléculas formadas de átomos, certo? E de partículas que giram em torno de um núcleo, sem se tocarem, certo? Com espaços “vazios”, entre aspas, separando-as, certo? De pequenos sistemas solares...
- Por que as aspas?
- Porque o vazio não existe. Existe o ar, denso ou rarefeito, que também é composto de moléculas. Mais separadinhas... Tão separadas que ficam voando...
- E daí?
- Daí que tudo o que existe no nosso Universo é formado de moléculas, que são formadas de átomos, que são pequenos universos iguais ao nosso.
- Por que você diz nosso universo?
- Porque o nosso Universo é muito pequeno, meu caro. Você já pensou que o nosso sistema solar - nosso universo - pode ser apenas um átomo de uma molécula, que junto com outras, pode fazer parte do braço ou de uma perna de um ser igual a nós? E que esse ser pode ter família, fazer parte de uma comunidade, de uma cidade, de um país, de um planeta, de um sistema solar igual ao nosso?
- Cara... você está indo muito longe...
- Está complicado?
- Não, está simples... Simples demais...
- Agora, olhe só: e uma molécula de um braço nosso, ou de uma perna, não poderá também conter muitos e muitos universos, cada um com seus planetas habitados, suas civilizações, seus paises, suas cidades, suas famílias, seus seres... iguais a nós?
- Estou ficando tonto...
- Você é, ao mesmo, ínfimo, se olhar para o firmamento; e colossal, se olhar para dentro de si mesmo.
- Na sua teoria...
- Minha não ! Tudo isso pode uma babaquice, mas... po-de não ser. Todos nós - eu, você, uma pedra, o vento - não passamos de bilhões de bolinhas girando desesperadamente umas em volta das outras. Somos todos iguais. Não existimos, somos feitos de espaços vazios. Lavoisier já dizia que nada se perde, nada se cria, tudo se transforma. Tinha toda razão. Somos carbono, hidrogênio e oxigênio - com variantes.
- Tudo bem. Concordo com você. Somos todos iguais. E daí? Morreu, morreu, cabô, cabô...
- É... Seremos todos iguais mesmo?
- Ah, meu Deus, vai começar tudo de novo...
- Por que uma pedra não pensa?
- Meu caro... Convenhamos... O que vem agora?
- Diga-me : por que uma pedra não pensa?
- Ora, porque não tem vida.
- E nós, é claro, a temos. Nós, as árvores, os animais... De onde ela vem, a vida?
- Nasceu conosco.
- E com a nossa morte, para onde ela vai?
- Morre com a gente.
- Simples, não? E para que seria isso tudo? A gente nasce, a vida nasce com a gente. A gente cresce, constrói uma porção de coisas, faz fortuna - ou vira um miserável - e tudo isso morre com a gente. A gente nasce miserável, morre miserável. A gente nasce em berço de ouro, morre em berço de ouro. A gente já nasce com idiotia e assim morre. Simples, não? Não é muito simples, achar que uma existência de oitenta, noventa anos, onde tudo ou quase tudo o que se constrói sobrevive à gente, e... pronto? Acabou?
- Ora...
- Um rei, um mendigo, um ladrão, um benfeitor, todos tem cérebro, coração, fígado, tudo igual. O que os faz diferentes?
- O cérebro.
- Não... esse é igual.
- O que, então?
- A mente, esta sim, é diferente. Cada mente, de cada indivíduo, é diferente. Como essa mente, que pensa e age - porque sem ela, quando o corpo morre vira pó - chegou ao nosso corpo? Para onde vai ela, depois?
- Morre junto com a vida. A mente é a vida.
- Por que a vida não nasceu com as pedras?
- Você está conseguindo me enrolar.
- Eu? Não. Você não me respondeu.
- Não respondi o que?
- Pergunta típica de quem quer ganhar tempo. Não respondeu de onde vem a vida.
- Eu não sei.
- Nem eu. Mas ela está ai, não está? Umas coisas a tem, outras coisas não. Quem resolveu que seria assim? Por que as “injustiças”, entre aspas, da vida? Não será porque ela já existia antes do nosso corpo e existirá depois que ele se for?
- Outra teoria?
- Não é teoria, é lógica. A mente - a vida - vem do infinito e vai para o infinito. Apenas troca de corpos, como nós, na matéria, trocamos de roupa quando esta fica velha. Nessas viagens pelos corpos, carrega com ela as coisas boas e as ruins que andou fazendo. Das ruins, aos poucos vai se livrando. Nas boas, vai acrescentando outras. Por isso, nascem crianças que serão gênios, outras que serão medíocres ou idiotas. Estas ainda devem ter muitas coisas para purgar. Não foi o “destino” que as fez nascer assim. Elas mesmas moldaram o seu destino.
 - Pois bem. A mente, então, vem de onde e vai para onde? Segundo o que diz, para o infinito...
- Para o nosso infinito, diferente dos infinitos dos outros planetas, dos outros universos... Por isso é que tudo é relativo. O tempo, o espaço que ocupamos, os nossos pensamentos, está tudo relacionado entre si. Por isso não entendemos as relações que devem existir nos outros universos. São próprias deles. Dizemos que não pode haver vida em outros planetas, porque lá não existe água, ou porque a atmosfera de lá não permite. Ora... uma pedra não precisa de atmosfera...
- Isso não explica nada.
- Eu sei. Mas, cá entre nós, há muita coisa que nos rodeia que não se explica, não é mesmo?
- É verdade. Milagres...
- Milagres não existem. Existem fatos ainda não explicados. Nada é sobrenatural. Tudo é natural, depois que sua origem é conhecida. Aos poucos, estas coisas vão se desvendando por si. Sabemos de muita coisa hoje que não sabíamos no passado. Será sempre assim. Isso talvez seja evolução... Quem sabe algum dia uma pedra terá vida? Quem sabe já tem, em algum lugar inconcebível por nós, uma vida inconcebível por nós?
- Assim é demais...
- Por que? Eu, você, a pedra... Não somos todos iguais?...

Declaração de Amor



Ah, Cidade Maravilhosa, como te amei!
Como te senti em minha pele... teu sol, teu mar, tuas cascatas e florestas! Como me retribuíste esse amor, dando-me tanta alegria e felicidade, nestes setenta e oito anos de convivência!
Agora, amo-te mais ainda, porque em silêncio, longe dos carnavais e sem os arroubos da mocidade, um amor maduro e consciente de quem jamais deixará de sentir por ti esse inexplicável apego, que supera teus poucos defeitos (quem não os têm?), que insisto em não ver...
Continua como és, não mudes nunca. Conserva esse encanto mágico que conquista quem quer que por aqui passe... Continua alegre e exuberante...

domingo, 24 de outubro de 2010

CARTA A UM DESCRENTE




Meu amigo

Recebi a sua carta. É bom saber que vocês estão bem. Embora nem todas as suas palavras estejam envoltas pelo ânimo, percebe-se que você continua a vencer - e bem - esta atual etapa da sua vida. Sei que você não pensa assim, e que se considera um perdedor. Não faz mal. Chegará o dia em que iremos conversar do mesmo lado do muro.

Você sabe, raramente se faz na vida o que se quer. Quase nunca trabalhamos no que queremos e o serviço nunca nos satisfaz. Às vezes conseguimos tal coisa, mas por tempo determinado. E quando conseguimos até mesmo dilatar esse tempo, tornando-o toda a nossa vida, envolvemo-nos com tantos outros problemas que sequer percebemos que estamos satisfeitos... O que é bom passa despercebido. Por que? Porque no contexto da Vida - com maiúscula - isto está certo. Se estamos aqui, neste planeta, é porque, por enquanto, precisamos estar neste lugar onde a felicidade plena não existe, onde o que existe são momentos de felicidade, que devem ser usufruídos enquanto durarem.

Não, meu caro, não me considere um pessimista. Veja se não tenho razão: onde trabalho, por exemplo - o clima é bom, a paisagem não é hostil, não há poluição, o ambiente de trabalho é ótimo, confortável, as refeições são de boa qualidade. Mas... parece uma prisão sem grades. Vestimo-nos todos da mesma cor, vamos ao almoço à mesma hora, nada temos a fazer após a refeição e gastamos o restante do tempo de que dispomos debruçados sobre o jornal do dia na própria mesa de trabalho. O jornal é o único contato com o mundo, das oito da manhã às cinco da tarde. Distantes que estamos muitos quilômetros da cidade, de suas vitrines, de seu comércio, de seus bancos, a calma e o silêncio daqui reforçam-nos, a toda hora, a diferença marcante entre nós e o burburinho e a agitação do centro urbano.

Mas... quantas vezes já reneguei este mesmo burburinho, o calor, a condução cheia, os elevadores demorados, os restaurantes cheios e caros, as filas dos bancos e o ruído ensurdecedor do transito que polui - enfim, quantas vezes reneguei a liberdade de ir e vir! No entanto, foi necessário que eu a perdesse para aquilatar o valor destas pequeninas coisas. Você sabe, nada melhor do que uma extração de dente para que se dê importância à mastigação temporariamente perdida...

E o raciocínio é o mesmo, para as partes ou para o todo. E o todo é a Vida infinita, que é a sucessão destes fugazes “minutos” de nossa Vida, aos quais chamamos de vida, do nascimento à morte; como se um curto período de oitenta e poucos anos fosse tudo o que existisse, e nada mais.
Se hoje, por estar aqui trabalhando neste “presídio”, consigo entender a liberdade, a qual não tinha valor para mim enquanto usufruía dela, faço o mesmo raciocínio para compreender o que estarei eu fazendo aqui na Terra, cercado de todo o conforto que esta maravilhosa Natureza me dá, porém cerceado em meus prazeres e em minha felicidade, que somente virão quando eu conseguir expurgar da minha mente - imortal que sou - todos os meus deslizes acumulados, adquirindo a capacidade de valorizar o meu próximo mundo, a minha próxima “vivenda sideral”, seja ela melhor ou pior do que esta aqui.

Certamente um pouco melhor há de ser, daqui a não sei quantas vidas. A atmosfera de cada mundo é o reflexo das emanações das mentes que o povoam - como nos nossos ambientes aqui na Terra.
Tanto um “inferninho” do nosso sub-mundo quanto um teatro de ópera refinado são construídos com os mesmos materiais. Mas cada um deles tem entranhado, no chão, nas paredes e no teto, os resquícios das emanações mentais dos seus frequentadores, que até se sentem mal quando por acaso trocam os lugares que frequentam.

Ao “todo”, novamente: por que não há de acontecer o mesmo com os mundos, que andam por aí girando em número infinito? Cada um deles reflete a mentalidade dominante de seus habitantes. Mas esta mentalidade há de sempre influir na formação dos fluidos que envolvem seu mundo, para melhor ou para pior, dependendo do seu estado evolutivo. Por isso, repito, quando eu merecer deixar de voltar para aqui, será porque deverei estar a caminho de outras vidas em um mundo melhor do que este. (Espero...) Ninguém regride. Ninguém dá para trás. Mesmo que durante toda uma vida tenha-se a impressão de regressão, é um engano. Cada uma delas é um degrau na escada infinita da ascensão. E se acontece descermos um degrau, será para aprendermos a subir os próximos dez ou vinte...

E esta escada, para onde vai? Não sei. Ainda não faz parte do nosso entendimento. O que sei é que há uma compulsão que nos aponta sempre o topo invisível, ainda que, às vezes, levantemos pela manhã achando que nada vale a pena e perguntando-nos o que estamos fazendo por aqui.

Sei que você não comunga comigo, quando se trata de entender a Vida. É pena, porque as coisas ficam mais claras, nós mesmos nos respondemos quando temos dúvidas, nós mesmos nos empurramos para a frente e para o alto. Nossa estada aqui “por baixo” é provisória, a verdadeira Vida está no mundo espiritual. Esta compreensão terá que vir de dentro para fora, nada se aprende nos livros além de rudimentos a serem trabalhados. Como na matemática: as quatro operações nos abrem as portas - o resto é raciocínio.
Como num computador: quantos milagres se conseguem apenas com o 1 e com o zero!

A compreensão das coisas torna a vida mais fácil, tudo passa a ter uma razão de ser, sejam bons ou ruins os acontecimentos. E a gente deixa de ter a necessidade de pensar assim: “eu não mereço tudo isso por que estou passando, nada fiz...”, porque passa a entender o que é a perfeição absoluta ; e que, se se está “passando” por alguma situação ruim, será porque não só a merece, como ela é necessária, e até mesmo salutar. O termo é corretíssimo: está passando, não volta mais, está de saída.

Vamos tocar para a frente, meu caro amigo. Algum dia estaremos do mesmo lado do muro. Se não for neste “minuto” da Vida que estamos atravessando, será no próximo. Ou no intervalo entre dois “minutos”...

Um grande abraço do seu amigo.
                                                            M.

sábado, 23 de outubro de 2010

SAUDADE


Saudade
10.out.2009

Que é saudade?
Dizem que é um sentimento que só na língua portuguesa pode ser expresso por uma palavra. Não há em nenhum outro idioma, no mundo, um sinônimo para a nossa saudade.
Para mim, não é bem assim.
Saudade tem duas definições bem distintas: uma – que não gosto, ou não aceito – quando se pensa em saudade apenas como vontade de voltar ao passado, aos “meus bons tempos”, como se costuma dizer, esquecendo que os “bons “tempos” só foram bons porque, felizmente, costumamos esquecer as coisas ruins que nos aconteceram. Já a outra para mim soa como sinônimo de... lembranças. Mas lembranças boas, é claro, porque as más jamais nos trariam saudades.
Quando me recordo de lugares que me foram queridos; de locais onde usufrui momentos maravilhosos; de objetos que de alguma forma marcaram minha vida; de livros, poemas ou simplesmente textos de poucas palavras, que li com prazer; de filmes cujas cenas me emocionaram ou me alegraram; de pessoas queridas que marcaram minha vida e que, ou estão longe de mim ou já estão me esperando do outro lado; de acontecimentos do passado que me foram gratificantes, que me deram qualquer forma de prazer...  então, sinto saudades.
Mas... nunca quis voltar àqueles lugares, onde certamente as mudanças do tempo me fariam decepcionado; procuro não guardar nos armários as coisas que tanto me foram caras (às vezes não consigo...); tampouco me apraz ler mais de uma vez os mesmos livros, ou ver duas vezes os mesmos filmes de que gostei.
Em minha mente apenas conservo - e mais nada - as gratas lembranças de quando pude estar com amigos ou parentes com quem há muito não convivo, relembrando-as sempre com prazer. Não me entristeço, porém, por não mais estarem eles perto de mim, mas aguardo sempre a oportunidade de revê-los, para “matar as saudades”.
Tampouco choro por aqueles queridos que partiram para a outra vida, porque sei que, mais dia menos dia, poderei estar novamente com eles. Ainda que tomemos rumos diferentes, lembrar-nos-emos mutuamente, recordando, cada um em seu degrau da escada infinita, tudo aquilo que nos fez ser amigos de verdade.
Também não quero de volta os episódios que tenha vivido, um dia, com alegria e emoção. Jamais seriam os mesmos. Quero, sim, lembrá-los sempre, intensamente, pedindo que nunca se apaguem da minha memória. Porque as lembranças fazem parte do passado, que é o único estado de alma que permanece imutável, pois o futuro ainda não existe e o presente, a cada segundo que passa, transforma-se em passado, que fica arquivado para todo o sempre.
Não concebo uma vida sem passado, sem lembranças – boas lembranças; mas, que se mantenham vivas também as más, para que possamos sentir ainda mais aquelas que nos fazem felizes. 
É isso que chamo de saudade.

domingo, 17 de outubro de 2010

Até a Última Gota


Direitos autorais garantidos - 17.10.2010


- Você sabe por que eu aluguei este quarto ?
A moça, sorrindo, oferecia-lhe um cafezinho. Não disse nada, talvez esperando que ele próprio respondesse à sua pergunta.
- Eu vou acabar com a minha vida.
Ela continuou sorrindo, a xícara de café na mão.
- Vou. Vou acabar com a vida. - repetiu, como dando ênfase aos seus propósitos.
Falava a sério. Seu semblante estava contraído. Já estava ali há meia hora e nada ainda havia dito. Todo o tempo ficara na janela, olhando para fora. Agora, resolvera falar:
- Vou acabar com a vida.
Parecia buscar coragem na ênfase da repetição. Por certo, não pularia lá em baixo, pois seria um espetáculo de extremo mau gosto, finalizado com o seu corpo esborrachado no meio da calçada. E ele positivamente não era trágico, tampouco buscava o sensacional. Mas falava a sério:
- É o “esquema”. Agora faço parte do “esquema”, mas... do lado errado. Demitiram-me, ninguém precisa dos meus serviços. Manda o “esquema” que cada vez se consiga mais lucro, mais dinheiro, mais posição - porém, para as empresas, as onipotentes empresas... e não para nós, reles empregados. Por que o “esquema” me corta, quando os fabricantes da crise continuam impunes, apenas administrando-a? Eu também preciso comer!
Ele continuava o seu pseudo diálogo. A moça, essa não dizia nada. Sorria, apenas.
- A médio prazo, ainda me aguento, enquanto derreto os meus bens. Não... meu suicídio não será por falta de dinheiro. É muito mais do que isso. Será por tristeza e desalento, por ver que muitos se imaginam preocupados com a crise e com a situação geral enquanto aumentam seus próprios salários, sem sequer pensar que existem famílias que já estão deixando de comer...
Ele se inflamara tanto que não percebia que a idéia de suicídio estava passando sutilmente para segundo plano. E aquela moça, com a sua mudez e seu eterno sorriso parecia ter o poder de neutralizar os seus funestos pensamentos.
- Ainda há muita coisa a se fazer por aqui - continuou - mesmo deste lado do “esquema”. Na verdade, devo agradecer a Deus por estar deste lado, por não ter aprendido a pactuar com os que estão do outro lado. Dependerá de mim sobreviver ou não fora do “esquema”, reavaliando os valores convencionados e substituindo-os pelas verdadeiras necessidades de uma vida tão singela e modesta quanto pura e livre dos modismos pré-fabricados. Pensando bem, o homem é fabricante de suas próprias necessidades, e eu não preciso acompanhar este cordeirismo...
Aos poucos, sem perceber, afugentava para sempre a lúgubre idéia de utilizar o quarto do hotel como câmara mortuária. Já lamentava até mesmo a quantia paga antecipadamente pela diária. “Fará falta lá em casa”, pensava, enquanto novos planos invadiam seus pensamentos.
- Sabe de uma coisa? - disse, dirigindo-se pela última vez à moça - Eu vou é para casa. Obrigado, meu anjo, pelos bons fluidos que você passou para mim...

Eram seis horas da tarde. Olhou demoradamente para o céu. Parecia estar presenciando as cores cambiantes do crepúsculo pela primeira vez... Depois saiu, fechando a porta atrás de si.
E lá fora, do outro lado da rua, fios de néon começaram a acender-se, marcando os contornos do rosto e da mão da moça, que continuava oferecendo o seu cafezinho, sorridente... Por último, acendeu-se o “slogan”:
“Bom até a última gota”...
As inspirações divinas vêm, às vezes, por caminhos inimagináveis...

sexta-feira, 8 de outubro de 2010

TRAMAS


Direitos autorais garantidos

- Tramas... tramas... A quantas tramas o destino nos submete...
- É verdade. Mas não é o destino. Nós mesmos traçamos nossas tramas, os nossos envolvimentos. A verdade é que somos nós mesmos que os fabricamos, e é ele, o destino, quem se submete a nós, senhores que somos do nosso futuro.
- Senhores do nosso futuro ? Mas que conversa é essa, meu caro ?
- É o que digo. Urdimos nossas próprias tramas, primeiro no presente. Depois... bem, aí cada um pensa como quiser...
- Você está muito reticente. O que está querendo dizer ?
- O que quero dizer, já disse.  Nós nos entrelaçamos em histórias escabrosas e depois nos assustamos com as consequências. Quer ouvir uma delas?
- Claro ! Suas histórias são sempre muito boas.
- É, mas esta é verídica. E você nem era nascido, ainda.
- Uma história antiga...
- Nem tanto. Eu já era homem feito. Foi em Londres. 1920. Eu morava lá, naquela época.
- Londres? No mínimo, vamos ouvir falar do “fog”, da Scotland Yard...
- Da Scotland Yard, sim. O “fog” fica por conta da sua imaginação. Mas infelizmente é uma história triste, muito triste.
- Por que ?
- Você vai saber. Primeiro, há particularidades nessa história, que são importantes. Por exemplo: não sei se você sabe, há ruas e mais ruas em Londres com intermináveis filas de casas, todas identicamente iguais. Um meio porão, uma pequena escada de sete ou oito degraus, uma porta ampla, duas ou três janelas. Casas amplas, geminadas, formando uma longa fileira de escadas, portas e janelas. Os tijolos, na sua cor natural, emprestam um ar de solidez às construções, e as esquadrias  pintadas de branco conferem a elas a tradicional aristocracia inglesa, ainda que em casas da classe média, residências que são de advogados, médicos, engenheiros. E é este o cenário da nossa história. Vamos a ela.
Em uma destas casas, que se distinguia das outras apenas pela placa à direita do portão, com o número 1371, moravam Herbert e Susan. Ele, professor universitário, ela de “prendas domésticas”, como se dizia na época. Viviam em agradável rotina. Todas as tardes Herbert apontava na esquina, e invariavelmente Susan o esperava, vigiando a sua chegada por trás das vidraças do pavimento superior. Vinha ele ora lendo as manchetes do vespertino, ora trazendo pequenos embrulhos de compras, depois de um dia de longas e cansativas aulas. Tinha-se a impressão de que nada jamais quebraria a rotina do casal.
No entanto aquelas casas, monotonamente iguais - e por isso mesmo - seriam o palco de acontecimentos que viriam romper, violentamente, a placidez da hora do crepúsculo.
Naquele dia Herbert adiantara-se um pouco, talvez uns quinze minutos apenas, mas o bastante para que Susan ainda não estivesse em seu posto de espera. Ele vinha aparentemente distraído, em passos lentos, de cabeça baixa, segurando em cada braço dois grandes pacotes de compras.
Susan terminava a sua toalete, após o banho. Dirigiu-se à janela, enquanto escovava os longos cabelos. Observava a esquina próxima, à espera que o marido despontasse por detrás do muro quando ouviu, no andar térreo, a porta da frente que se abria com forte ruído. Susan correu para o corredor que dava acesso aos quartos. Do alto da escada viu o marido parado, extático, ainda no umbral, agarrado aos pacotes de compras.
- Herbert ! O que houve, meu Deus ? Que barulho foi esse ? Por que não entra, homem ?
Herbert tentou falar, mas não conseguiu. Olhou a esposa fixamente, com uma expressão de pavor. Susan desceu as escadas de um salto :
- Por favor, Herbert, diga-me o que aconteceu! Dê-me estes pacotes... Fale comigo...
Herbert sentou-se, antes que lhe faltassem as pernas. Parecia estar saindo lentamente de um estado de choque.
- A Meg... está morta, Susan ! Está lá, caída no vestíbulo, de bruços sobre o tapete, com um... punhal cravado nas costas ! Ela está morta ! Morta !
- Quem está morta, Herbert ? A Margareth ? E como você sabe ? Que foi fazer na casa deles a esta hora?
- Agora há pouco... eu vinha pela rua... você sabe... nossas casas são todas iguais... Distraído como sou, dirigi-me à casa dos O’Neil, confundindo-a com a nossa. Com as mãos ocupadas, empurrei a porta com o ombro, já estranhando tê-la encontrado entreaberta. Então a vi, caída no chão, com aquele horrível punhal cravado nas costas ! Imóvel, os olhos vidrados...
- Meu Deus, Herbert !
- Eu ainda pude ver um vulto, que escapava pela porta dos fundos ! Não sei quem seria, e tampouco procurei saber. Saí, como entrei...
- A Margareth, Herbert, assassinada em sua própria casa ! E mais essa, você enganando-se com as portas... Como pôde acontecer isso ? E agora, o que vamos fazer?
- Só há uma coisa a fazer. Chamar a polícia !
- A polícia ? E quem acreditaria na sua história? Quem imaginaria ser possível alguém enganar-se com a própria casa onde mora ?
- Mas eu confundi as portas, Susan. E não há nada a temer, se é a pura verdade. O que não posso é ficar por aqui aguardando calmamente que alguém descubra o corpo, sabendo que a pobre Meg está lá, caída...
- Meg... Diga-me, desde quando, tanta intimidade? 
- Ora, Susan ! Aponte-me uma única Margareth, em toda a Inglaterra, que não seja Meg. Maneira de falar, apenas... E o momento é grave, não comporta esse tipo de observação !
- Então vai chamar a Scotland Yard ?
- Mas é claro. E já, nada tenho a temer.
- Pois bem. Mas ao menos relaxe um pouco, pois por ela nada mais há a fazer.
- Sim. Pobre Margareth... Quando Francis souber, há de enlouquecer !
Susan percebeu que a vizinha estava novamente sendo tratada por Margareth. Herbert voltava ao tratamento cerimonioso.
Algum tempo depois, um carro da polícia parou, sem alarde, em frente à casa. Em seguida, bateram à porta. Herbert apressou-se em abri-la.
- Boa tarde, senhor. Sou o inspetor Jackson, da Scotland Yard. Alguém nos chamou comunicando um crime, mas não vejo...
Herbert atalhou-o :
- Eu chamei a polícia, inspetor Jackson. Mas dei o endereço da casa ao lado, não o meu.
O inspetor Jackson retirou um pequeno bloco de notas do bolso do sobretudo.
- Recebemos um chamado para o número 1373. Não é aqui ?
Herbert olhou de soslaio para Susan, com um ligeiro sorriso nos lábios.
- Não, senhor. É ao lado...
O inspetor voltou ao patamar, para conferir o número da placa.
- Ora... essas casas tão iguais, às vezes nos confundem, na verdade. Bem, mas vamos aos fatos. Foi o senhor quem ligou ?
- Sim, fui eu.
- Gostaria que me acompanhasse à casa de seus vizinhos.
- Sim, sim, é meu dever. - e voltando-se para Susan - Não convém que você vá, querida. A cena é chocante.
Encaminharam-se para a casa ao lado. A porta estava apenas encostada, como ele a havia deixado. O inspetor   empurrou-a  e  deparou  com   o  corpo  de Margareth no local e na posição descrita por Herbert.
Caído de bruços, tomando a diagonal do pequeno vestíbulo. Vestia um “negligée” bastante transparente. Os cabelos dourados, em pequenos caracóis, caiam em desalinho pelos ombros, e o rosto pousado de lado no chão deixava à mostra seus olhos verdes, arregalados, que pareciam haver fixado as feições do assassino.
- Pobre moça. O senhor comunicou-se com o marido, Mr. Herbert ?
- Não, inspetor. Não julguei que minha ação fosse além do contato que fiz com a Scotland Yard. Aliás...
- Sim, Mr. Herbert ?
- Bem, creio mesmo que ele já devesse estar por aqui, pois é um homem de hábitos bastante rotineiros e a esta hora, geralmente, já está em casa.
- Conhece os seus hábitos, Mr. Herbert ?
- Não propriamente. Mas, como vizinhos que somos, às vezes, mesmo que não se tenha a intenção de bisbilhotar, acaba-se ficando a par da vida dos outros.
Enquanto fazia perguntas, o inspetor examinava o ambiente.
- Com que então o senhor enganou-se de casa...
- Sim, eu vinha muito distraído. Externamente não há nenhuma diferença entre essas construções. O senhor cometeu o mesmo engano, não ? Por que estranha que tenha acontecido comigo ?
Herbert estava excitado.
- Calma, Mr. Herbert. Eu não disse que havia estranhado, fiz apenas um comentário...
- Desculpe-me. Estou muito nervoso. Jamais pode-ria imaginar que iria encontrar a Meg nestas circunstâncias.
-Meg ? Hmm... E em quais circunstâncias esperava encontrá-la ?
- Inspetor !  Eu não esperava encontrar a sra. Margareth em nenhuma circunstância ! Eu estava retornando à minha casa e não à dela, lembre-se !
- Sim, claro, claro. Devo concluir, pelo tratamento dispensado à vítima, que as famílias eram íntimas ?
-  Não, senhor. A nossa intimidade não ia além de um ou dois cumprimentos diários.
- E quanto a esse vulto que o senhor disse-me ter visto? Poderia dizer-nos mais alguma coisa sobre ele?
- Não muito. Na verdade quando entrei na casa já era quase noite, e só havia uma luz acesa, a deste saguão. O resto da casa estava na penumbra. Vi apenas uma sombra esgueirando-se por aquela porta.
Herbert apontou para uma porta que dava para o quintal.
- Homem ou mulher ?
- Homem, por certo. A menos que as damas já estejam usando calças masculinas...
Encaminharam-se os dois para a porta dos fun-dos, enquanto os auxiliares do inspetor Jackson tomavam as providências cabíveis junto ao corpo.
- Há marcas aqui na terra. Veja, Mr. Herbert, são marcas de sapatos, e de sapatos grandes.
- Talvez do próprio Francis...
- Quem é Francis ?
- O marido de Margareth.
- O senhor o está acusando, Mr. Herbert ?
- De modo algum ! Mas, se a casa é dele... Há de haver marcas dos seus pés por aí...
- Dito assim, soa como acusação...
- Inspetor, não tente por as palavras em minha boca. Fiz um comentário, apenas.
- Mas para um profissional de polícia, qualquer comentário é digno de análise.
- Convenhamos que só me falta ouvir que estou sob suspeita !
- Desculpe-me, senhor, mas não posso descartar nenhuma possibilidade. Toda essa história será analisada, palavra por palavra. Se é só o que temos...
- Mas eu só estou nessa história porque enganei-me de casa, por Deus ! E por isso passo a suspeito de um crime ?
- Compreenda-me, senhor, eu não o estou acusando de nada. Mas é meu dever esmiuçar todos os pormenores.
- Sim, sim, eu compreendo. Mas tantas dúvidas, tantas insinuações...
- Infelizmente, terei que convocar todos os envolvidos, direta ou indiretamente, para prestarem depoimentos.
- Então, estou sob suspeita. Muito bem, estou às suas ordens.
As investigações se sucederam. No mesmo dia foram ouvidos, além de Mr. Francis, que chegou logo em seguida e foi tomado por forte crise nervosa, Susan, Herbert, e a criada de Francis e Margareth.
Até um vendedor de frutas, que frequentemente fazia o seu comércio perto das duas casas, por ter visto Herbert entrar e sair da casa da vizinha, prestou também o seu depoimento. Além de outras pessoas, ainda que pouco ou quase nada envolvidas no caso, mas que mais tarde talvez viessem a ser valiosas testemunhas no processo.
Para o inspetor Jackson todos eram suspeitos, uma vez que não havia muitas pistas a seguir. Mas ninguém era tendenciosamente considerado criminoso e por isso necessitado de previamente provar a sua inocência. Havia antes de tudo o respeito à integridade moral de qualquer um dos envolvidos em tão triste acontecimento. Era esse o estilo de trabalho da famosa polícia.
Entretanto, com o decorrer dos trabalhos, começaram a recair suspeitas mais fortes sobre Herbert. Por qualquer motivo que o inspetor Jackson não conseguia atinar qual fosse, imaginou que Herbert preparara uma trama bem urdida para dar cabo de Margareth. A troca de casas alegada por ele não o convencera, embora ele próprio houvesse cometido engano semelhante. Mas ele não morava ali e enganara-se, talvez, por ter lá ido apenas uma vez, o que não era o caso do marido de Susan.
A porta do vizinho poderia não estar aberta quando Herbert lá chegou; “Meg”, como carinhosamente ele referira-se à vizinha, talvez a tivesse aberto para ele, de “negligée” e à meia-luz, dando-lhe intimamente as costas. Por isso, poderia tê-la apunhalado por trás, tendo-a colocado suavemente no tapete, com cuidado para não manchá-lo de sangue. A posição do corpo não era de quem houvesse caído de uma só vez, o que reforçava as suas suspeitas. Pensara talvez em esconder o corpo mais tarde, mudando posteriormente de decisão.
Apenas o motivo do crime ainda não percebia qual pudesse ter sido. Mas as provas começavam a lhe parecer muito evidentes. Mr. Jackson, por isso, resolveu indiciar Herbert como provável autor do crime e tentar levá-lo a julgamento.
Susan parecia chocada. Herbert, um criminoso? Não... Ele não teria tanto sangue frio a ponto de tirar a vida de quem quer que fosse, armando para isso tamanha trama e tentando incriminar o pobre Francis. Não, não o Herbert.
Assim pensava também Mr. Jerome Kent, um brilhante advogado, amigo de Herbert e Susan de longa data. Jerome mostrava-se indignado com o inspetor pela indiciação de Herbert. Resolveu lutar para impedir que tal indiciação fosse levada avante, assumindo a sua defesa. Estudou minuciosamente o caso, inteirou-se de todos os pormenores. Pediu, então, formalmente, uma audiência com o inspetor, para tentar demovê-lo da idéia da acusação de Herbert. Ele já tinha o seu próprio conceito formado. Francis e não Herbert, era o criminoso. Matara a esposa por ciúmes incontroláveis. Margareth era uma linda mulher. Embora muito recatada atraía as atenções de todos onde estivesse, e Francis devia sofrer muito por isso. Algumas vezes, tanto Herbert como Susan já haviam ouvido não muito discretas discussões do casal, por causa dos ciúmes exagerados de Francis. Além disso, no entender de Jerome, as provas que a Scotland Yard tinha em mãos até então eram inteiramente contra ele. As marcas encontradas na terra coincidiam com as dos seus sapatos, que o próprio Jackson observou estarem sujos, na hora em que ele tomou conhecimento da tragédia e ajoelhou-se ao lado do corpo, chorando muito. A punhalada nas costas, sem nenhum sinal de luta, e a posição do corpo sobre o tapete, de bruços e com os braços encolhidos sob o corpo, indicava que a pobre Margareth havia sido atingida pelas costas e de surpresa, tendo seu corpo sido pousado no chão pelo assassino. E o próprio punhal pertencia a Francis. A ausência de digitais indicava que o assassino havia tomado as providências para encobri-las.
Mas ainda havia mais. Jerome disse ter uma testemunha decisiva: o vendedor de frutas, que fazia ponto do outro lado da rua, em frente à casa de Francis, e que se lembrava muito bem de ter visto um homem entrar e sair da casa sobraçando dois enormes  embrulhos, um  em cada braço, não tendo se demorado mais do que alguns segundos, o que, a seu ver, não lhe teria proporcionado tempo hábil para cometer o crime.
Pressionado pelas evidências, ou pelo menos pelo que se mostravam ser evidências, o inspetor resolveu reconsiderar a sua decisão. Talvez o advogado tivesse razão. Talvez houvesse mais provas contra o marido da morta do que contra Herbert. Reestudou o caso, tomou novos depoimentos. Desta vez, o ambulante enfatizou - honestamente - o reduzido tempo em que Herbert permaneceu dentro da casa e como não teria tido tempo suficiente para desvencilhar-se dos embrulhos, cometer o crime e depois apanhá-los. E o inspetor convenceu-se, por fim. Chamou à sua presença Susan e Herbert, que compareceram acompanhados de Jerome. Comunicou-lhes que iria retirar as acusações contra Herbert, pois havia um outro mais forte suspeito: Francis.
- É claro que o júri é soberano para decidir se ele é realmente o culpado. Eu apenas indicio os suspeitos baseado em minhas investigações. Os novos depoimentos fizeram com que as investigações tomassem novo rumo. Mr. Herbert, o senhor está livre de quaisquer suspeitas.
Jerome olhou para Susan e sorriu. Haviam ven-cido.

E Francis foi julgado. Protestou inocência durante todo o desenrolar do processo de acusação e do julgamento. Recusou-se a falar, parecia ter medo de mover-se em sua própria defesa. Demonstrava com as suas atitudes ter alguma culpa, ou pelo menos agia como tal. Não se atinava qual o motivo que o teria levado a cometer tal crime, e tampouco ele o confessava. Mas as provas eram evidentes e condenatórias. Além de tudo, ninguém jamais saberia ao certo como teria sido a vida do casal, na intimidade. Por detrás da sobriedade e da elegância que sempre demonstravam, no relacionamento social, que teria havido de tão grave ou escabroso que viesse a culminar em tão chocante crime ?
O acúmulo de provas e o brilhantismo da promotoria acabaram por sensibilizar o júri e Francis foi condenado. A sentença para tais crimes era drástica. Francis estava perdido. Houve as apelações da defesa, que de nada adiantaram senão adiar por pouco tempo a terrível sentença : morte por enforcamento.
Herbert e Susan voltaram à vida rotineira. Ele continuava distraído, mas nunca mais se enganou com as portas... Mesmo porque a casa vizinha permanecera fechada desde a época dos funestos acontecimentos. Ambas as famílias, tanto de Francis como de Margareth jamais voltaram ao bairro, delegando a um corretor a venda do imóvel.
Mas nem tudo ia bem na casa n.1371. Já se haviam passado alguns meses desde o ocorrido e Herbert permanecia inquieto, um tanto nervoso, doente, desanimado e desinteressado por tudo. Ele via Susan desvelar-se em cuidados e atenções. Ela mesma ia à cozinha preparar suas refeições, seguia as orientações médicas à risca, sem que ele respondesse com saúde a tanto zelo. Definhava a olhos vistos. Nem mesmo o médico, por fim precisando estar constantemente à sua cabeceira, descobria a causa daquelas doentias reações.
Por fim já não se levantava do leito. Seu estado de fraqueza era tal que não mais lhe permitia sequer levantar os braços. Dobravam os cuidados e as atenções de Susan, mas em vão. Herbert tinha certeza de que estava se aproximando do fim.
- Susan... chegue mais perto... -  sua voz era um fio - preciso que você me ouça com atenção. Você também, Jerome, meu amigo.
Jerome também velava à sua cabeceira. O desenlace não tardaria. Ambos aproximaram-se mais, para ouvi-lo melhor.
- Eu estou acabado, Susan. Ninguém sabe por quê eu definho mais e mais a cada dia que passa... mas eu sei. É o remorso que me corroi as entranhas... Mas não quero morrer com este peso na consciência, com essa culpa ardendo-me por dentro. Eu tenho uma confissão a fazer.
Susan olhou para Jerome. Sua fisionomia não denotava tristeza. Surpresa, sim. E um ligeiro desapontamento...
- Susan... Eu matei Margareth...
Ela olhou-o, sem espanto. Com desinteresse, mesmo.
- Você, Herbert ? Mas por quê ? Que motivos teve?
- Nós tínhamos um caso, Susan... Um caso banal... Mas ela apaixonou-se por mim, queria que eu me divorciasse... Eu sempre gostei de você, meu amor. Tinha-mos apenas uma aventura, eu não queria destruir o meu lar. Ela ameaçou-me com o escândalo e a chantagem, estava desnorteada. Resolvi então por termo a tudo. Armei toda a trama, minuciosamente, em todos os seus detalhes. Por fim, matei-a... Eu matei Margareth por amor a você, Susan. E matei Francis também, pobre coitado. Agora, mata-me o remorso... Perdoa-me, Susan...
Susan a tudo ouviu friamente. Seu olhar era calmo, enervante. Diabólico, mesmo...
Ao seu lado, Jerome estava impassível. O esforço da confissão parecia ter sugado o resto das forças do pobre Herbert. Ele não conseguiu captar o estranho olhar da esposa.
- Eu matei Margareth... e Francis... - repetia ma-quinalmente - perdão, perdão...
- Herbert - Susan respirou fundo, com enfado - também eu tenho uma confissão a fazer. Não é apenas o remorso que lhe corrói as entranhas. Sou eu, Herbert... Sou eu quem está lhe matando aos poucos... lentamente... suavemente...
Herbert reuniu as últimas forças:
- Você? Mas... por que, Susan?...Você...sabia?...
- Não, eu não sabia. Mas também eu armei uma trama, meu caro. Você matou Margareth porque ela começava a lhe aborrecer, não foi ? Pois você ajudou-me a matar Francis, porque ele também começava a me perturbar. Também nós tínhamos um caso... E ele exigia de mim o que Margareth exigia de você... Fez as mesmas ameaças, o escândalo, a chantagem... Até que você facilitou as coisas para mim. Quando foram retiradas as acusações que recaíam sobre você e voltamos à nossa vida aparentemente normal, livres da todos aqueles pesadelos, continuei com a minha trama. Agora você poderá imaginar por que eu preparava a sua comida com tanto desvelo, com tanto carinho, não é mesmo? Eu não podia fazer as coisas apressadamente, precisava ter paciência... E o veneno, administrado em doses mínimas, foi o meu aliado. Ou será que foi o seu remorso, que me ajudou, Herbert? Tanto faz, agora...
Aquela confissão era demais para Herbert. Jamais poderia imaginar que a sua Susan... e Francis...
Desviou o olhar para Jerome, como que buscando silenciosamente um apoio, um impossível desmentido do que acabara de ouvir, que viesse do amigo.
Mas Jerome fitava-o com um sorriso nos lábios... Herbert já não mais entendia o que se passava. Por que Susan estava matando-o? Francis já não estava morto? E aquele sorriso do amigo, afrontando-o em seus últimos momentos ?
- Jerome, você...- Herbert não conseguiu terminar a frase. De olhos fixos no seu defensor, no seu... amigo, já não tinha mais sua mente em ordem. Então, em meio a uma convulsão, fechou os olhos para sempre.
Susan, então, voltando-se para Jerome tomou sua mão, e apertando-a contra o peito, murmurou carinhosamente:
- Enfim, Jerome... Estamos livres...
- Como vê, meu caro, são tramas em cima de tramas. E eu presenciei todo o desenrolar desse trágico novelo... Até mesmo a posterior condenação do casal. Mas isso já é outra história...
- Meu Deus, que coisa incrível ! Mas como você guardou tantos detalhes, depois de todo esse tempo ?
- É verdade...Talvez por ter estado muito perto de tudo...
- Como assim ?
- Como eu lhe disse, morava em Londres, na época. E tinha uma banca de frutas, quase em frente à casa de Herbert...